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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Novo site do Memorial da Resistência é vacina contra negacionismo

Memorial da Resistência de São Paulo  - Reprodução/Memorial da Resistência de São Paulo
Memorial da Resistência de São Paulo Imagem: Reprodução/Memorial da Resistência de São Paulo

Colunista do UOL

25/03/2021 01h52

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Quem já esteve no Memorial da Resistência, em São Paulo, sabe que os efeitos colaterais da visita podem se arrastar por dias, talvez semanas. O passado nem sempre é fácil de engolir, principalmente quando se trata de um passado dolorido, sombrio, escancarado diante de nossos olhos numa transversal do tempo qualquer. Não há mata-borrão do céu que dê conta de tantas manchas torturadas.

Ali, no prédio do antigo Dops, essas nódoas se encontram. E transbordam. As grades, as portas espessas de madeira de lei, o chão gelado, o pátio minúsculo destinado ao banho de sol, as instalações que reproduzem o chuveiro de água fria e a fossa turca nas celas com até quinze presos políticos, as paredes rabiscadas, mas, sobretudo, os testemunhos em áudio e vídeo de quem esteve ali na condição de preso político, tudo isso repisa na memória da pele as marcas de outro tempo.

Quando é um resistente que retorna, agora como pesquisador ou turista, é quase certo que caminhará pelos corredores com a sutileza de um elefante. Não há leveza possível quando se sabe que ali, numa daquelas celas, o jovem Bacuri, de 25 anos, perdeu o movimento das pernas e acabaria executado, após 109 dias de tortura, depois de ler no jornal uma notícia sobre sua própria fuga, uma fuga que nunca existiu. Não há leveza possível quando se sabe que ali, no segundo andar, um delegado de nome Sérgio Paranhos Fleury comandava a sinfonia de paus-de-arara e cadeiras-do-dragão.

O antigo Dops foi transformado em museu em 2002. As instalações são modestas, muito aquém do que poderia ser e do que se pode conferir em outros centros dedicados à nobre tarefa de restabelecer a verdade sobre violações de direitos humanos praticadas como política de Estado. O Museu da Memória e dos Direitos Humanos de Santiago, no Chile, e o Museu do Apartheid de Johanesburgo, na África do Sul, apenas para citar dois em que já pisei, superam em todos os quesitos o que o Memorial da Resistência. Ainda assim, às vésperas do aniversário de 57 anos do golpe militar, quase 32 desde a primeira eleição direta para presidente, nosso Memorial da Resistência ainda é o endereço mais completo, bem cuidado e relevante do Brasil no que tange ao registro da história do período autoritário e à educação em Direitos Humanos.

Agora, finalmente, o Memorial ganhou também um site à altura - ou quase - de sua nobre vocação. Levantamento recente apontou que a faixa etária mais assídua nas visitas à página é formada por jovens de 16 a 25 anos. Deduz-se que são muitos os estudantes que recorrem ao memorial em busca de informações sobre ditadura e redemocratização. São jovens de muitas cidades, inclusive de outros Estados, que procuram na web um acervo representativo de imagens, histórias e documentos que lhes permita narrar a memória e a verdade dos "anos de chumbo". E vivenciar parte da experiência de quem adentra o espaço físico do antigo Dops.

Até ontem, no entanto, essa expectativa era sistematicamente frustrada. Vídeos, fotos, exposições, testemunhos e o amplo material pedagógico e educativo já elaborado no contexto do Memorial simplesmente não apareciam no ambiente virtual. Era como se o Memorial da Resistência não existisse na internet, algo absurdo numa instituição que se propõe exatamente a ampliar o alcance e estender às novas gerações o conhecimento sobre determinado período histórico. "O Memorial da Resistência tem um acervo enorme, constituído principalmente por testemunhos de ex-presos políticos em vídeo e pelos conteúdos das exposições feitas ali, e não havia como acessar esse material remotamente", diz o conselheiro Renan Quinalha. "No contexto da pandemia, com as visitas em grupo suspensas e o espaço físico fechado a maior parte do tempo, tínhamos a missão urgente de levar nosso acervo para o site", afirma Ana Pato, que assumiu a coordenação do Memorial em maio do ano passado.

Um novo site começou a ser desenvolvido imediatamente, pensado como repositório e também como vitrine. Lançado na última quarta-feira, num simbólico 24 de março, Dia Internacional do Direito à Verdade (em Relação às Graves Violações dos Direitos Humanos e à Dignidade das Vítimas, segundo definição da ONU), o novo site escancara um mosaico com 186 locais de memória a serem pesquisados, com fotografias e informações fundamentais de cada um, e nada menos do que 155 depoimentos gravados, alguns com uma ou duas horas de duração, dos quais, por enquanto, só se pode assistir de casa um breve teaser.

Em cartaz até 17 de maio, a exposição Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura, também está disponível para navegação online, o que não era feito até recentemente. E, a partir deste sábado, 27 de março, será inserido no site um catálogo do curso de educação em Direitos Humanos que o Memorial organiza desde 2012 - e que, pela primeira vez, foi oferecido em formato virtual no ano passado. Ana Pato conta que o próximo passo será implementar as versões do site em inglês e espanhol. E que, até o final do ano, serão cumpridos mais alguns passos no âmbito da memória institucional, de modo a fixar o Memorial como um centro de referência, agora também no ambiente digital. "Não podemos desconsiderar nosso papel no combate ao negacionismo", acrescenta a coordenadora.

O novo site do Memorial da Resistência pode ser acessado por meio da URL memorialdaresistenciasp.org.br/.