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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O dia em que Anita foi roubada (e levou uma rasteira do banco)

Após 30 anos como cliente, Anita precisou contrair um empréstimo a ser quitado em 7 anos para cobrir um rombo de 8 mil reais que o banco poderia ter evitado - Rubens Cavallari/Folha Imagem
Após 30 anos como cliente, Anita precisou contrair um empréstimo a ser quitado em 7 anos para cobrir um rombo de 8 mil reais que o banco poderia ter evitado Imagem: Rubens Cavallari/Folha Imagem

Colunista do UOL

14/10/2021 00h02

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Eu ainda tentava processar a notícia de que o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a prisão preventiva de uma mulher, mãe de cinco filhos menores, condenada por furtar dois pacotes de Miojo, um envelope de Tang e uma Coca-Cola de 500 ml, quando soube do calvário de Anita.

Foi o Padre José Oscar Beozzo quem me contou, por telefone. Para quem não o conhece, Padre Beozzo tem 80 anos, metade dedicada à diocese de Lins (SP), e uma vasta produção literária, principalmente sobre a História da Igreja Católica nos séculos XX e XXI: as pastorais sociais, o Concílio Vaticano II, as comunidades eclesiais de base, a opção preferencial pelos pobres. Teólogo, cientista social e doutor em História, Beozzo está morando desde antes da pandemia no Seminário João XXIII dos Scalabrinianos, no Ipiranga, onde Anita trabalhou por 25 anos, cuidando das roupas, das compras e do café-da-manhã de 60 seminaristas. Foi lá que Anita lhe contou o golpe de que foi vítima.

Aposentada, vivendo com R$ 1.700 por mês do INSS, Anita Rodrigues, 66 anos, foi sacar dinheiro num caixa eletrônico numa manhã de quarta-feira, em fevereiro, quando se atrapalhou com os comandos. Insira o cartão, retire o cartão, digite sua senha, biometria, serviço solicitado, valor do saque, tempo expirado: inconveniências frequentes num mundo formatado para quem tem 15 anos a menos. Resultado: o cartão ficou preso na máquina. Diante do desespero daquela senhora, um rapaz se ofereceu para ajudar. Orientou sobre o que digitar e conseguiu liberar o cartão para ela. Ufa, que alívio! Somente ao chegar em casa, Anita percebeu que o cartão que o rapaz lhe entregou não era o seu. Aflita, ligou para o banco. As notícias eram ainda piores.

O rombo está descrito no processo judicial movido em junho contra o Bradesco. Em poucos minutos, o jovem "solícito" havia limpado a conta da aposentada - um resgate de R$ 937, uma compra de R$ 1.400 e outra de R$ 900. Não satisfeito, o espertalhão gastou mais R$ 3.450 no crédito e contraiu um empréstimo pessoal de R$ 1.450. Tudo isso num intervalo de uma hora, entre o golpe sofrido num caixa eletrônico do Ipiranga e o telefonema para o banco. Todas essas despesas foram prontamente autorizadas pela instituição bancária, sem um telefonema sequer para a correntista, nem mesmo para confirmar o empréstimo, coisa que ela nunca havia contraído em 30 anos como cliente. O prejuízo ultrapassou R$ 8 mil. O sistema foi incapaz de bloquear as transações. O terceiro maior banco do Brasil não teve a competência de acusar a movimentação atípica, mesmo diante de um gasto repentino equivalente a cinco meses de aposentadoria, a única fonte de renda de Anita.

Coube a Anita fazer exatamente o que a moça do Fone Fácil orientou: providenciou um boletim de ocorrência no mesmo dia e redigiu uma carta solicitando a restituição do valor desviado pelo ladrão. Em seguida, foi pessoalmente à agência, na esperança de que resolvessem a situação. Para sua surpresa, o gerente alegou que nada poderia fazer. O erro, afinal, tinha sido da cliente, e não do banco. Onde já se viu tamanha ingenuidade? Quem mandou não ter mais cuidado com o cartão? Digitar a senha aos olhos do rapaz solícito, que loucura... Nenhuma palavra sobre a negligência do banco em zelar pela segurança no local do caixa eletrônico, nenhuma palavra sobre a falha no equipamento que provocou a retenção do cartão, nenhuma palavra sobre a inexplicável autorização para gastos tão elevados - cinco vezes a renda mensal da cliente!

Diante do choro aflito da aposentada, o gerente propôs que ela contraísse um empréstimo. Não um empréstimo pessoal, como o contraído pelo gatuno, mas um empréstimo consignado no valor de R$ 5 mil. Anita não queria. Achava aquilo o fim da picada. Não bastasse o golpe, ainda teria de se endividar? É a única alternativa, afirmou o gerente. O bancário ofereceu a Anita uma "oportunidade única, de pai para filha": R$ 5 mil a serem quitados em 84 parcelas de R$ 112,63, corrigidos pela inflação. Digitei na calculadora: sete anos em dívida, ao fim dos quais Anita terá pagado R$ 9.460. Um ágio de 89%.

Os desdobramentos são escabrosos. Sentindo-se duplamente lesada, Anita narrou o golpe ao padre Beozzo, que prometeu arranjar um advogado. "Trata-se de inequívoca responsabilidade objetiva das instituições financeiras, mormente o risco da atividade, respondendo pelos danos causados aos seus clientes, mesmo quando relacionados a fraudes ou delitos atribuídos a terceiros", diz a ação movida pelo advogado José Rubens de Souza, apoiada em farta jurisprudência. "Vale frisar, por relevante, que o fato de a requerente sofrer o constrangimento de ter seu cartão trocado por fraude de terceiros, por si só, já configura o dano moral, conforme consolidado na Súmula nº 479 do Superior Tribunal de Justiça: 'As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias'".

Por meio do advogado, Anita propôs uma ação declaratória de inexistência de débito - ou seja, a extinção da dívida acompanhada por uma declaração de que "nada consta" - e uma indenização por danos materiais e morais. A causa foi calculada em R$ 23.475,22. Citado, o banco reivindicou "exoneração de responsabilidade". "Não é cabível a responsabilização do banco por conduta cometida inteiramente por terceiro, em razão de falta de atenção da titular", diz a defesa do réu, igualmente apoiado em jurisprudência. "Estamos, na realidade, diante de uma questão de segurança pública, em que não há participação da instituição financeira no que ocorreu".

Fazendo a história curta: a juíza entendeu que o banco tinha razão. Exime-se a instituição bancária de qualquer cuidado com a segurança em caixas eletrônicos fora das agências. E reitera-se a responsabilidade exclusiva dos correntistas em zelar pelo cartão, pelas senhas e pelo manuseio das máquinas - mesmo quando lhe engolem o cartão.

O que parece especialmente perverso, no caso, é a agilidade com que o banco autorizou transações que superam em muito os rendimentos mensais da cliente. Não deveria ser assim. E provavelmente não aconteceria se ela tivesse uma conta "prime", um cartão xis, um gerente ípsilon. Um rombo de aproximadamente R$ 8.500 para quem recebe R$ 1.700 e não tinha mais do que R$ 4 mil em conta é equivalente a uma rasteira de R$ 50 mil para quem ganha R$ 10 mil com apenas R$ 25 mil de saldo. Quanto tempo seria necessário para repor o valor devido? Faz sentido autorizar despesas tão volumosas, em diferentes modalidades, num intervalo de tempo tão curto, num terminal de atendimento 24 Horas, conhecendo-se o perfil da correntista e sabendo de sua renda?

Tentei imaginar se fosse comigo. Quantas vezes não tive meu cartão bloqueado pelo banco, sempre que o sistema acusou uma operação atípica, uma primeira compra num estabelecimento jamais visitado por mim, um gasto acima do padrão, um débito maior que o habitual. Um SMS avisa que determinada transação não foi autorizada e solicita que eu digite 1 ou 2 para liberar a movimentação, caso tenha sido eu mesmo a solicitá-la. Na ausência de resposta, o telefone toca. A verificação da compra é feita ao vivo, duas ou três perguntas e pronto.

A desigualdade socioeconômica mostra-se perversa também no tratamento dispensado aos correntistas. Comunicada logo após o incidente, a instituição bancária foi incapaz de estornar os valores suprimidos, tampouco aqueles debitados no cartão de crédito. E, segundo o relato de Anita, sobraram acusações contra ela. Tachada de ingênua, a aposentada sentiu-se menosprezada e, nas entrelinhas, entendeu ter despertado também a suspeita de cúmplice, como se ela pudesse ter tramado o golpe junto com o meliante a fim de embolsar parte do dinheiro. Talvez tivesse, ela mesma, tramado uma espécie de autogolpe para desfalcar o banco.

O caso de Anita demonstra inépcia do Bradesco em lidar com a hipótese de golpes desferidos contra clientes mais velhos, legalmente protegidos pelo Estatuto do Idoso, e revelam o atraso estrutural dos serviços bancários no que tange à prevenção de riscos para essa população. "Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei", diz o artigo 4º do referido Estatuto. "A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade à pessoa física ou jurídica nos termos da lei", afirma o artigo 5º.

Recentemente, o Bradesco divulgou lucro líquido de R$ 12,834 bilhões no primeiro semestre de 2021. As primeiras parcelas do empréstimo consignado imposto a Anita ajudaram a formar esse montante.

Recebedora de uma aposentadoria de R$ 1.700, Anita é o arrimo de sua família. Viúva, ela tem um casal de filhos adultos que ainda mora com ela. O filho, desempregado, está vendendo material reciclável, segundo a mãe. Ao telefone, Anita me contou que as parcelas do empréstimo são descontadas automaticamente pelo INSS. Dessa forma, ela não precisa se preocupar com os boletos. Melhor assim. Se ficasse inadimplente por motivo de força maior, era bem capaz de algum juiz determinar sua prisão preventiva. Como fizeram com a famélica mãe de cinco menores que ousou furtar dois pacotes de macarrão, um refresco em pó e uma garrafa de refrigerante num supermercado.