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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A noite em que o MST ocupou o Theatro Municipal

Artistas do MST sobem ao palco do Theatro Municipal de São Paulo na montagem da ópera "Café"  - Divulgação
Artistas do MST sobem ao palco do Theatro Municipal de São Paulo na montagem da ópera "Café" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

05/05/2022 00h10

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O 7272 encostou quase em frente ao prédio da Light, ora convertido em shopping-center. Antigamente, os ônibus faziam ponto na Praça Ramos de Azevedo, bem ao lado do teatro, ali onde tem a estátua do dito cujo, encimando a escadaria que desce para o Anhangabaú. Hoje, mesmo quando o letreiro diz "Praça Ramos", os ônibus param um pouco antes, na Xavier de Toledo. A bem da verdade, a maioria nem para: virou circular.

Desci apressado e cruzei as colunas do Theatro Municipal - assim mesmo, com th - quando faltavam dez minutos para o início do espetáculo. São belas aquelas colunas. O teatro mais tradicional de São Paulo imita a Opera de Paris e foi inaugurado há mais de um século pelo arquiteto que dá nome à praça. Mostrei o comprovante da terceira dose, o documento com foto e dei uma rápida conferida no ambiente enquanto a hostess conferia o QR code do ingresso eletrônico. Subi depressa os degraus até chegar ao meu assento. Um lugar apertado, diga-se. Em 1900, as pessoas deviam ser todas vinte centímetros mais baixas. Certeza.

Fazia muito tempo que eu não entrava no Municipal. Devo ter estado ali, no lado de dentro, umas três ou quatro vezes, no máximo. A experiência mais antiga que guardo na memória foi de um monólogo com o Luís Mello em meados dos anos 1990. Uma decepção. Não pelo ator ou pelo texto do Tolstói, mas pela simplicidade do cenário e do figurino. Na próxima vez, pensei, quero ver uma ópera, uma coisa suntuosa, com grande elenco. Se não é para ser assim, melhor ir ao Sesc ou ao CCSP, ora. Com uma condição: tudo pelo mesmo ingresso popular daquele monólogo, é lógico. Estudante, sabe como é.

Voltei universitário, no início dos anos 2000, para algum evento no qual os cidadãos dançantes de Ivaldo Bertazzo formaram uma serpente de corpos no foyer. Depois, aos vinte e poucos, numa das primeiras edições da Virada Cultural paulistana, para ver sabe-se lá o quê. Desconfio que tenha sido uma apresentação musical, em tempos de Kassab prefeito. Por fim, estive naquele palácio grã-fino para xeretar uma grande reforma, cheia de restauros, e fazer uma reportagem com o fotógrafo Lalo de Almeida. Deve ter sido em 2010. O teatro foi reinaugurado em 2011, ano de seu centenário.

Mais recentemente, fiquei boquiaberto quando vi, via plataforma de streaming, Emicida a reger uma orquestra com 1.500 vozes e envolver a plateia, os camarotes e as galerias. "O feijão germina no algodão, a vida sempre vence". Sensacional, o AmarElo. Já viu? Ao vivo, então... Cê é loko, tem coisa que não dá para perder. E eu perdi.

Desta vez, me acomodei no balcão pronto para me surpreender. "Café" é uma ópera brasileira, cantada em português, com pinceladas de ritmos populares endêmicos, como a catira. Foi composta por Felipe Senna sobre libreto de Mário de Andrade (de 1941) e com dramaturgia e direção cênica de Sérgio de Carvalho (da Companhia do Latão). No palco, a Orquestra Sinfônica Municipal, o Coral Paulistano e o Balé da Cidade de São Paulo encontram-se com o maestro Luís Gustavo Petri, a estupenda cantora Juçara Marçal (do álbum imperdível "Delta Estácio Blues"), o cantor Negro Leo, o ator Carlos Francisco e, acredite, um coletivo de artistas do MST.

O tema é a fome, mas não apenas ela. É também a exploração da força de trabalho pelos donos dos meios de produção, o desemprego, a mais-valia, o acúmulo de capital. "Uma ópera coletiva, politizada e anticapitalista", qualificou o diretor num vídeo postado no YouTube do MST.

O pano de fundo é a crise que sucedeu à quebra da bolsa de 1929, mas não apenas ela. É também a crise que sucedeu à quebra da democracia e dos direitos trabalhistas e humanos após o golpe de 2016. É o Brasil no limite: faminto, doente, miserável, ridicularizado e corrompido.

De repente, a voz de Carlos Marighella ressoa no sistema de som. "Revolução!", grita a guerrilheira interpretada por Juçara. Lavradores surgem por todos os lados, como se insurgidos detrás das trincheiras, levantados do chão, e cruzam a nave e as galerias. Pás, enxadas, bandeiras e facões tomam o palco. "Se o campo não planta, a cidade não janta", recitam, em coro. "Terra não se ganha, se conquista". Um entregador de aplicativo toma a palavra e a gente descobre que é tudo a mesma coisa: o camponês alijado de 1930 e o trabalhador precarizado de 2022. De repente, é o Brasil caboclo que finca seu mastro no teatro dos abastados, construído lá atrás pela elite cafeeira, e atualiza o libreto de Mário, oitenta anos depois.

Na sessão de estreia, na terça-feira (3/5), a audiência respondeu à altura. Os artistas do MST foram aplaudidos de pé. Os gritos de "fora, Bolsonaro" enredaram-se em jogral, tecidos por quem pagou R$ 10 pelo ingresso e também por quem pagou R$ 120. Aos poucos, foram substituídos por gritos de "Lula", primeiro aqui, depois ali, até emular o público do Lollapalooza e se transformar num altivo "olê-olê-olê-olá...". Mais, não conto.

As apresentações da ópera "Café" vão até o próximo domingo, dia 8.