Topo

Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vai ter golpe. Não vai ter golpe. Vai. Não vai.

18.jul.2022 - O presidente Jair Bolsonaro (PL) ataca o sistema eletrônico de votação em reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada, em Brasília. - Clauber Cleber Caetano/PR
18.jul.2022 - O presidente Jair Bolsonaro (PL) ataca o sistema eletrônico de votação em reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada, em Brasília. Imagem: Clauber Cleber Caetano/PR

Colunista do UOL

21/07/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Pronto. Virou série de suspense, daquelas que repercutem no balcão da padaria, acompanhando o pingado e o pão na chapa. Vai ter golpe? Não vai ter golpe? As especulações variam, a audiência se divide. O Brasil quer saber, não necessariamente nesta ordem, se a mulher da casa abandonada sofrerá alguma sanção, se Vecna destruirá Hawkins e se vai rolar golpe de Estado no Brasil.

No final de 1988, quando a TV aberta ainda despertava paixões, a turma da padaria vivia intrigada com outra polêmica, igualmente complexa: quem matou Odete Roitman? A resposta ficaria para o último capítulo de Vale Tudo, e nem a atriz Beatriz Segall abria o bico para dar qualquer pista. Glória Pires, a personagem que vivia sua filha na trama da Globo, talvez comentasse com propriedade: "não sou capaz de opinar".

Naquela época, ainda não havia reeleição no Brasil. Tecnicamente, nem eleição direta para presidente da República. A primeira após um intervalo de quase trinta anos aconteceria somente no ano seguinte. Ainda assim, os balões golpistas eram sistematicamente inflados, não necessariamente pelos inquilinos dos palácios.

Manipulação e fraude

Em 1989, por exemplo, a Globo teve seu quinhão de culpa na eleição de Collor ao manipular a edição dos "melhores momentos" do último debate. O que foi ao ar no Jornal Nacional da véspera do pleito foi um VT (sigla de videotape, coisa antiga, tô ligado) francamente desfavorável a seu oponente, Luiz Inácio Lula da Silva, em sua primeira tentativa de chegar ao Planalto. Isso após outro golpe, orquestrado pela campanha do candidato alagoano, servir de bandeja ao eleitorado uma combinação explosiva de fake news, invasão de privacidade, difamação e falso testemunho envolvendo a filha e uma ex-namorada de Lula. O povo? Bem, o povo parecia mais preocupado em acompanhar as aventuras de Tieta em seu retorno a Santana do Agreste.

E o Caso Proconsult, quem lembra? Quarenta anos atrás, em 1982, um escândalo eclodiu na política fluminense com a denúncia de uma trama supostamente urdida para impedir a eleição de Leonel Brizola, recém-chegado do exílio, para o governo do Rio. Proconsult era o nome da empresa contratada pelo Tribunal Regional Eleitoral para reunir os boletins enviados pelas seções eleitorais e totalizar os votos. Em determinado momento, lá pelo terceiro ou quarto dia de apuração, os votos de certos candidatos começaram a diminuir, algo impensável em qualquer eleição. De repente, desapareceu uma imensidão de votos brancos e nulos, incorporada prontamente à contagem oficial do candidato da situação, Moreira Franco, do PDS, partido de sustentação da ditadura.

O Brasil ainda era governado por um militar, a seleção de Telê Santana caía diante de Paulo Rossi na Espanha e algo de podre rondava a eleição no Rio de Janeiro. Vai ter golpe, Brizola denunciava. Foi um quiproquó daqueles até que a Proconsult se retratou, admitiu o "erro" e os resultados da eleição puderam ser finalmente anunciados, quase duas semanas depois, confirmando a vitória de Brizola. Quem tem saudade do voto em papel, aliás, é uma gente estranha, que nunca esteve numa quadra de apuração.

O que quer Bolsonaro?

A ameaça de golpe voltou a povoar os portais de notícia e insuflou as redes sociais nos últimos dias. Uma tese, bastante plausível, é que a ameaça de golpe é que é o golpe. Ao martelar o tema dia sim, outro também, Bolsonaro e seus comparsas conduzem a pauta como o flautista de Hamelin a atrair os ratos com sua flauta encantada.

Subitamente, assuntos mais prementes e urgentes perdem terreno e são deixados em segundo plano. Inflação de 40% nos alimentos, aumento exponencial da população em situação de rua, 33 milhões de brasileiros passando fome, a hipocrisia anticonstitucional do estado de emergência, o avanço da pesca ilegal, dos garimpos, do desmatamento e dos bandidos do agronegócio que despejam veneno de drones sobre aldeias, assentamentos, escolas e pequenas propriedades que resistem praticando agricultura familiar e agroecológica.

Um bolsonarista, insuflado pelo discurso bélico e perverso de seu herói, mata um petista numa festa e fica por isso mesmo, culpa da polarização e dos humores exacerbados. Sigilo de 100 anos, desvios na Codevasf, orçamento secreto, escambo de escolas por repasses a igrejas, aparelhamento da Polícia Federal para proteger aliados. Um show de horrores.

Ao ensaiar o golpe, o próprio golpe se faz real, inteiro, tangível: o que temos é a consagração de uma política de extermínio, mal disfarçada sob o véu do histrionismo de quem se faz de alucinado para tocar fogo no parquinho.

O discurso exaltado catalisa a radicalização. E o que fazem os defensores da democracia? Vão ao Twitter. Ou ao balcão da padaria.

— Vai ter golpe.

— Não vai ter golpe.

— Vai.

— Não vai.

Era melhor quando o que nos afligia era saber quem havia matado a dondoca da novela.

Matar, fuzilar ou mandar pra Ponta da Praia

Há controvérsias sobre o hipotético histórico de atleta de Bolsonaro. Mas que ele tem histórico de golpista, isso é público e notório. A fruta nunca cai longe do pé, dizem (desculpa chamá-lo de fruta, senhor presidente, é com sentido figurado). Tudo começou, dizem, com um projeto de explodir bombas num quartel, golpeando a hierarquia e colocando em risco a vida de colegas. Muitos anos depois, como um preguiçoso deputado de oposição, reclamou que a ditadura deveria ter matado muito mais gente, "uns 30 mil", começando pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Em 2016, ombreou-se a Eduardo Cunha, Michel Temer e Janaína Paschoal, entre muitos outros, e perpetrou o voto mais infame da redemocratização, rendendo homenagens ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem chamou de "o terror de Dilma Rousseff".

Em 2018, no ápice da campanha eleitoral, foi ao Acre, subiu num palanque, empunhou um tripé como se fosse um fuzil e exultou: "Vamos fuzilar a petralhada do Acre!" Semanas depois, numa transmissão por vídeo exibida num telão na Avenida Paulista às vésperas da eleição, a verve golpista transbordou mais uma vez de seu discurso. "Petralhada, vão todos vocês pra Ponta da Praia", berrou. Ponta da Praia, nos anos 1970, era a forma com que os militares se referiam à base da Marinha na Restinga da Marambaia, no Rio de Janeiro. A expressão logo virou sinônimo de local clandestino convertido em centro de tortura. "Vocês não terão mais vez em nossa pátria", emendou o então candidato. "Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil."

Personagem de Monty Python

No mais recente episódio, Bolsonaro convocou embaixadores de diferentes países para uma apresentação no Palácio do Alvorada e expôs, desavergonhadamente, o que fingiu ser sua preocupação com o futuro da democracia. Repetiu a ladainha do voto impresso auditável, citou um inquérito que investiga um ataque hacker ao TSE em 2018 a fim de justificar que o sistema não é seguro (ainda em andamento, o inquérito não é conclusivo) e se agarrou novamente à teoria de que uma fraude nas urnas não será tolerada. "O que mais quero é a transparência", afirmou. "Queremos que o ganhador seja aquele que realmente votado."

Constrangidos, os embaixadores olhavam para baixo, sérios, impassíveis. Faziam a egípcia. Se estivessem na rua, por certo mudariam de calçada. Terminada a exposição do presidente, nenhum aplauso. Nada.

A cena tem o condão de mostrar que, ao contrário de 1964, uma aventura golpista em 2022 não contará com o apoio de outros países, nem mesmo dos Estados Unidos. Tampouco a população parece preocupada, como naquela época, com a "ameaça comunista" ou outra lenda urbana do gênero. Se a história muitas vezes se repete, agora como farsa, os estrilos de Bolsonaro parecem confirmar a tese.

Sem apoio popular nem internacional à aventura da ruptura, convencido da derrota iminente e temendo a hipótese cada vez mais factível de um indiciamento e uma eventual condenação na justiça, de si e de seus filhos, o presidente mete os pés pelas mãos, rumina anacronismos e regurgita bobagens.

Ainda assim, seu ímpeto golpista não arrefece. Bolsonaro parece um personagem do humorístico Monty Python que, num filme antigo, continua pulando, com o peito inflado, e repetindo "vem me pegar" aos adversários. Mesmo depois de terem lhe cortado as duas pernas e os dois braços.