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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não é possível tolerar tanto racismo

Cena da série Coleção Antirracista, de Val Gomes, episódio 1 - Reprodução
Cena da série Coleção Antirracista, de Val Gomes, episódio 1 Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

01/12/2022 11h51

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Se você realmente acredita que é difícil distinguir quem é branco e quem é preto num país devastado pelo mito da miscigenação racial, pergunta para a Polícia que ela sabe. A dica é da psicóloga Cida Bento e aparece no primeiro episódio da série "Coleção Antirracista", de Val Gomes, lançada em São Paulo na última terça-feira (29). Ágil, instigante e engajada, combinando iconografia histórica, trechos de filmes e depoimentos de craques como Sueli Carneiro, Salloma Salomão, Joice Berth e Neon Cunha, a série de oito minidocumentários, de 10 a 14 minutos cada, estará disponível a partir do dia 5 em três plataformas de streaming: a SPCinePlay, a CultNeTV e o Observatório de Educação do Instituto Unibanco.

Para que fique claro: a Polícia a que Cida Bento se refere não tem nenhuma capacidade cognitiva acima da média, nem PhD em etnologia, visão especial ou sexto sentido. O que ela tem e que faz dela uma espécie de expert em reconhecer pretos e brancos é racismo. Um racismo aflorado, escancarado, quase sempre truculento, que perpassa o genocídio perpetrado ainda hoje por Rota, Bope e outras tropas, visita os esquadrões da morte dos anos 1960 e 1970 e remonta às leis da vadiagem em vigor um século atrás.

Dependendo do grau de melanina, perambular pela rua era um perigo em 1920. E continua sendo em 2022. Se tivesse unhas longas, em especial na mão direita, ou fosse flagrado com um pandeiro, aí era cadeia na certa. Uma guia de Oxalá ou Xangô pendurada no pescoço, então, nem pensar.

Nesta semana, cheguei a perder o ar ao ler nos jornais a notícia de que a Prefeitura de São Paulo estuda investir até R$ 70 milhões por ano para equipar a segurança pública com uma tecnologia de reconhecimento facial capaz de flagrar e denunciar quem estiver vadiando e, absurdo maior, identificar se a pessoa é branca, preta ou parda. Como esse tipo de coisa ainda acontece em São Paulo, no Brasil, na América Latina, no mundo? Como esse tipo de coisa ainda acontece no século XXI?

O sistema adotado no país para vigiar e punir foi todo moldado com base no racismo estrutural que nos acompanha desde antes da fundação do país. Um racismo que é estrutural e recreativo, mas que é também canalha, perverso, vexatório, profundamente segregacionista, meticuloso, detalhista, despudorado, desumano.

O que Cida Bento omite na frase que abre esta coluna é que há outras instituições igualmente treinadas para reconhecer quem é preto e quem é branco no Brasil. Uma delas é a imprensa, sobretudo certa imprensa centenária e burguesa, paulista, fundada por fazendeiros e industriais e mantida na terceira década do terceiro milênio com a torpe finalidade de preservar uma herança reacionária, promover valores combalidos e defender o acúmulo do capital, a perpetuação no poder, os interesses de seus pares.

Ao noticiar a mais recente chacina em escolas, que fez três vitimas fatais e feriu treze em Coqueiral do Aracruz, no Espírito Santo, o Estadão decidiu ilustrar a nota com mãos negras empunhando um revólver. O assassino, já conhecido no momento da publicação, é branco, presumidamente fascista, adepto da eugenia, da supremacia branca, ativista pelo branqueamento da população.

O que permite a um jornal como o Estadão cometer esse tipo de erro, deslize, falha ou seja qual for a palavra escolhida por seus prepostos para tentar justificar o episódio, é o mesmo que permite às balas da polícia terem uma natural predileção por atingir e ferir corpos negros, preferencialmente matá-los. É também o que permite à nossa sociedade, visivelmente doente, assistir diuturnamente a esses abusos, a esses excessos, e tocar a vida como se nada houvesse.

Por quanto tempo mais? Quando aprenderemos todos, autoridades e jornalistas, operadores do direito e profissionais liberais, que não há democracia nem segurança ou cidadania enquanto não aprendermos a ser profundamente antirracistas? Quando o fogo nos racistas deixará de ser apenas uma figura de retórica ou uma ação pontual, empregada simbolicamente apenas contra esculturas horrendas erguidas pelos supremacistas de ontem para homenagear bandeirantes anacrônicos?