Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
É justo garantir Direitos Humanos para quem sempre os combateu?
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Um dos paradoxos mais bonitos da democracia representativa é este: ao optar por ela, cidadãs e cidadãos comprometem-se a jogar conforme as regras estabelecidas. Isso implica, por exemplo, reconhecer a soberania do voto, defender a vitória do adversário e estar submetido às leis (que, ao menos em tese, deveriam ser as mesmas para todos). Uns chamam isso de andar dentro das quatro linhas da Constituição. Pode ser. Outros entendem que a Constituição precisaria ser atualizada e não medem esforços para moldá-la ao seu bel-prazer.
Alguns veneram a pena de morte praticada nos Estados Unidos, embora não tolerem a pena capital adotada na China. Vai entender. Pedem intervenção militar porque flertam com uma autocracia marcial conduzida pelos aliados, mas não aguentam 24 horas de intervenção federal quando quem está no poder são os inimigos. Assemelham-se ao menino mimado que derruba o tabuleiro no chão quando começa a perder, ou ao dono da bola que põe a pelota debaixo do braço e vai embora depois de levar o primeiro gol. "Se eu não ganho, ninguém joga".
Os Direitos Humanos são, por definição, universais. Devem valer para o padre e para o delinquente, para o morador de rua e para o presidente, para o traficante e o sonegador. Eles surgiram para coibir abusos praticados pelos detentores do poder e ajudaram a inaugurar a idade moderna, separando-a das sombras medievais. São, também por definição, um mecanismo de proteção das pessoas contra a violência de Estado, o autoritarismo e suas medidas de exceção.
Um dos primeiros códigos de Direitos Humanos foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Anunciada na França apenas 43 dias após a tomada da Bastilha, tornou-se um dos mais importantes legados da Revolução Francesa ao fixar em 17 artigos alguns dos principais trunfos da vitória da burguesia sobre um sistema monárquico absolutista e autoritário, que prendia de forma arbitrária quem pensava diferente, que cobrava impostos cada vez mais altos sem prover melhorias à vida dos contribuintes e que se esquivava de qualquer responsabilidade diante da fome dos franceses em tempos de crise (comam brioches!). Seu recado, amplo e evidente, é mostrar que um governo, qualquer que seja, não pode fazer o que quiser, com quem quiser, quando quiser. Há limites, inclusive para a punição.
Embora a guilhotina tenha sido usada na França até 1977, buscou-se abolir, em 1789, o caráter monocrático da execução. Logo em seu primeiro período, a declaração inaugura o postulado da universalidade: "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos". Os homens, as mulheres e as pessoas de gênero neutro, podemos atualizar. Em seguida, no artigo 2º, estabelece quatro direitos imprescritíveis: "a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão". Atenção: o conceito de liberdade não era absoluto sequer em 1789, conforme a explicação dada no artigo 4º: "A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei."
Hoje, é outra a declaração que a ONU, a Unesco e as democracias buscam obedecer. Firmada em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos surgiu no pós-guerra, quando o mundo começava a respirar novamente após assistir às maiores barbáries do século XX, patrocinadas por líderes tirânicos como Mussolini e Hitler. Enquanto os 30 artigos da declaração de 1948 eram elaborados, o mundo buscava processar, consternado, o horror do holocausto, a inadmissível perseguição em razão de religião, raça ou origem, a inaceitável perversão das pesquisas genéticas e psíquicas promovidas nos campos de concentração. Desde então, toda forma de tortura (artigo 5º) passou a ser rechaçada mundialmente (pelo menos em tese, desconsiderando a truculência excessiva de certas forças de segurança, não apenas no Brasil) e toda pessoa passou a ter o direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas (artigo 20º).
São os Direitos Humanos que garantem, por exemplo, a liberdade de expressão e opinião. São eles que asseguram o direito de abandonar seu país e pedir asilo em outro. São eles que determinam que ninguém poderá ser deliberadamente preso, detido ou exilado. Salvo, é claro, quando seu comportamento revela a prática de crime, previsto na Lei, e seu caso for submetido ao devido processo legal.
A prisão cautelar, forçosamente provisória, de 1.500 pessoas que estiveram no ato golpista do último domingo, foi acompanhada, num prazo de poucas horas, de uma profusão de reclamações de ordem legalista e de reivindicações de garantias constitucionais. Em relatos feitos a uma conselheira da OAB que esteve no local, queixavam-se da qualidade da internet sem fio disponibilizada no ginásio de esportes onde foram abrigados. Outro testemunho, dado por um golpista de Torres, no Rio Grande do Sul, os detidos estão sofrendo com o colchonete a que têm direito e com a marmitex distribuída no local, "gelada e sem sal". "Bota aí para os direitos humanos nos visitarem", recomendou ao repórter que o entrevistava.
Sim, a garantia dos direitos humanos é universal e, portanto, devem valer também para os que tentam golpear a democracia e destruir as instituições (no sentido figurado e no sentido concreto). A defesa dos direitos humanos é e sempre será um contrapeso em relação ao arbítrio, à opressão. Sem os direitos humanos, legitimam-se medidas autoritárias e arbitrárias, como o justiceiro em substituição ao judiciário, a vingança em detrimento da pena, o olho por olho, a mão cortada daquele que furta, o paredão de fuzilamento.
Jair Bolsonaro, nosso presidente-viúva-porcina, "aquele que foi sem nunca ter sido", afirmou num tuíte de 2016 que Direitos Humanos são "o esterco da vagabundagem". Seu filho Carlos voltou ao tema e à frase num tuíte de 2017, em que mostrou o pai com uma camiseta que tinha estampados os mesmos dizeres. Num meme clássico, quase um best-seller, vê-se a imagem de um taco de baseball com a inscrição "direitos humanos", como para dizer que qualquer pedido de direitos humanos será respondido com cacetada. "Direitos humanos para humanos direitos", clamava a estupidez reacionária, cretina e direitista diante dos apelos do campo progressista contra a superlotação dos presídios, a violência dos esculachos, a truculência das operações policiais nos bairros de periferia, a reincidência do uso da tortura nas carceragens e delegacias.
A Terra plana dá voltas.
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