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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Funai ignora diálogo e recomendações, diz câmara indígena do MPF

Adriano Machado/Reuters
Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

18/06/2022 04h00

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O Brasil vive um momento de perda de direitos e porta fechada para diálogo com a Funai (Fundação Nacional do Índio), avaliam os procuradores da 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (Ministério Público Federal), que é coordenada pela procuradora da República Eliana Torelly.

No momento em que o mundo volta os olhos para a questão após o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, a câmara afirma que estamos "vivenciando um período marcado por graves retrocessos nos direitos conquistados pelos povos indígenas nas últimas décadas".

Em reposta colegiada à coluna, os procuradores criticaram a série de "ataques normativos" que retiram direitos dos indígenas, como a proposta de autorizar mineração em terras pertencentes aos povos tradicionais.

Eles dizem também que a Funai tem se negado a ter diálogo com a câmara e que "obstáculos burocráticos e operacionais" têm sido usados como justificativas para atrasar processos demarcatórios.

Em 2019, em entrevista ao UOL, Torelly já havia criticado a política indigenista do governo federal e classificava as ideias de Jair Bolsonaro como um retorno aos tempos da ditadura militar. Para procuradora, só há duas saídas para evitar novas tragédias: "a regularização das terras indígenas e sua efetiva proteção pelo poder público".

Leia as respostas dos procuradores aos questionamentos do UOL:

Eliana Torelly, subprocuradora-geral da República - Antônio Augusto-MPF - Antônio Augusto-MPF
Eliana Torelly, subprocuradora-geral da República
Imagem: Antônio Augusto-MPF

UOL - De que forma a câmara tem acompanhado esse aumento de tensão, violência e até mortes por disputas em terras indígenas?

A 6ª Câmara considera que se está vivenciando um período marcado por graves retrocessos nos direitos conquistados pelos povos indígenas nas últimas décadas, especialmente pela ausência de demarcações. Em nota pública divulgada em abril do ano passado, a câmara pontuou diversas violações aos direitos indígenas que, com certeza, geram ou contribuem para o acirramento de conflitos nas terras indígenas, como a edição da Instrução Normativa nº 9/2020 —que desconsidera as terras não homologadas— ou da Resolução nº 4/2021 da Funai —que pretendia criar critérios de indianidade [projetos de futuro]—, a Instrução Normativa Conjunta Funai/Ibama nº 01/2021 - que favorece a exploração das terras indígenas. A apresentação ou discussão de projetos legislativos flagrantemente inconstitucionais e inconvencionais como os projetos de lei 190/2020 ou 490/2007 buscam disseminar a falsa ideia de que a exploração das terras indígenas poderá ser legalizada.

Nesse sentido, que ações então têm sido feitas?

A 6ª Câmara tem realizado ações coordenadas com os procuradores da República que atuam na temática para o acompanhamento dessas situações, bem como para o ajuizamento de ações civis públicas com o objetivo de compelir o estado a cumprir suas obrigações.

Importante registrar que, quanto à atuação do órgão indigenista federal, sua atual diretoria tem se mostrado refratária às tentativas de diálogo institucional e às recomendações expedidas pelo Ministério Público Federal, não restando outro caminho que não a via judicial.

Que medidas a 6ª Câmara pensa em tomar para que a tensão possa ser reduzida nesse cenário?

Inicialmente, é importante esclarecer que a Câmara não tem atribuição criminal, portanto a apuração e eventual responsabilização por crimes cometidos contra indígenas não estão sob sua alçada, ainda que em alguns casos seja o mesmo procurador ou procuradora a oficiar nas matérias cíveis e criminais. Não obstante, a 6ª Câmara entende que a maior parte das violências praticadas contra os povos indígenas decorre de conflitos territoriais, da exploração ilegal de seus recursos naturais e da discriminação, infelizmente, ainda muito presente na vida desses povos.

Destarte, a regularização das terras indígenas e sua efetiva proteção pelo poder público apresentam-se como condições fundamentais para a redução dos conflitos e para prevenção da violência contra os povos indígenas.

O MPF tem conseguido vencer essas ações, em regra?

O MPF tem obtido decisões favoráveis do Poder Judiciário no sentido da desintrusão de terras indígenas, instalação e reestruturação de Bases de Proteção Etnoambiental, o auxílio da Força Nacional para ações de proteção territorial, etc. A 6ª Câmara entende também que é indispensável a consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas para todos os projetos e medidas legislativas e administrativas que possam afetá-los, conforme previsto na Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]da qual o Brasil é signatário.

Como a câmara vê a paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas no país pelo atual governo?

Em que pese a demarcação das terras indígenas ser uma obrigação do estado brasileiro inscrita na Constituição Federal, ela não tem sido cumprida seja por obstáculos burocráticos e operacionais ao andamento dos processos administrativos de regularização fundiária, como o retorno à Funai de diversos processos já prontos para a edição de decreto de homologação ou a constituição/alteração de GTs [grupos de trabalho] de identificação e delimitação de terras indígenas coordenados por pessoas sem a qualificação necessária, seja por uma interpretação equivocada da decisão cautelar proferida pelo ministro Edson Fachin no recurso extraordinário 1.017.365, de 7 de maio de 2020, no sentido de que esta obstaria a continuidade dos processos administrativos demarcatórios.mbeduol widget