Carlos Madeiro

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Reportagem

Justiça absolve policial expulsa por vídeo sobre saúde mental na PM

Depois de três anos e dois meses de espera pelo julgamento, a soldado da PM-PE (Polícia Militar de Pernambuco) Mirella Virgínia Luiz da Silva, 26, foi absolvida da ação penal militar por publicar um vídeo em setembro de 2021 falando sobre o adoecimento mental e falta de apoio da corporação.

A repercussão do vídeo resultou em sindicância e na indicação de expulsão pela Corregedoria da PM-PE. A expulsão foi consumada e publicada no Diário Oficial do Estado no dia 1º de setembro de 2023, assinada pela então secretária de Defesa Social Carla Patrícia Cunha. Ela apontou crime militar de "crítica indevida" e argumentou que o vídeo "gerou uma repercussão negativa no seio da tropa".

Na gravação, Mirella afirma que a corporação é "doente" e "tóxica". "É uma instituição composta de pessoas que se superestimam por terem postos superiores, muitas vezes, diminuindo, perseguindo, fazendo pouco caso, humilhando e coagindo aqueles que estão em posto inferior", disse. (veja trecho abaixo)

Entretanto, após uma mobilização nas redes sociais e que contou até com a recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos, a governadora Raquel Lyra (PSD) negou exonerar Mirella, que segue nos quadros da corporação. Desde então, ela está afastada pela junta médica da PM.

Sentença

A sentença que a absolveu foi publicada no último dia 11 e mostra que o Conselho de Justiça Militar decidiu não puni-la por unanimidade. O próprio MP-PE (Ministério Público de Pernambuco), autor da denúncia em 2022, também mudou de lado durante o processo e pediu, no dia do julgamento (7), que Mirella não fosse condenada .

Após viver com assédios na corporação, Mirella desenvolveu quadro de estresse pós-traumático e teve ideações suicidas —ela começou a ter depressão severa depois de entrar na PM— após passar por assédios sexual e moral na corporação. Entre 2019 e 2021, ela passou pelo menos cinco vezes no serviço de saúde da PM, sempre recebendo atestados para atuar em desarmadas burocráticas. O UOL teve acesso a todos os laudos.

Os sentimentos que tenho são de alívio, por ver o MP reconhecer que fui a vítima; mas também de medo de que alguém --que foi responsável por tudo isso-- tente alguma outra contra mim.
Mirella, ao UOL

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Mirella fazia trabalho de policial nas comunidades de Goiana (PE)
Mirella fazia trabalho de policial nas comunidades de Goiana (PE) Imagem: Arquivo pessoal

Entenda o processo

A denúncia contra Mirella foi feita pelo MP-PE em fevereiro de 2022, citando prática de crime previsto no artigo 166 do Código Penal Militar, de "publicação ou crítica pública sem autorização". A denúncia foi encaminhada pela Corregedoria da PM-PE, e uma condenação poderia gerar pena de uma detenção de dois meses a um ano de prisão.

Em 11 de outubro daquele ano, a denúncia foi recebida pela justiça, e Mirella se tornou ré no processo.

Na justiça, Mirella alegou que o vídeo foi tirado de contexto: "foi um pedido de socorro, pois eu não sabia o que fazer", disse, que citou ainda que policiais femininas da sua unidade "estavam amedrontadas" já que existia "um superior que estava aterrorizando as pessoas".

Mirella afirma que, com ela, esse superior —cujo nome ela não revela— era diferente no tratamento e fazia investidas com teor sexual.

Ele me chamava na sala dele, me oferecia bolo. Minha vida virou um inferno, ele ficava me chamando para ir com ele para a praia, passear de lancha, e que eu não precisava pagar nada. Eu comecei a ficar com muito medo, pois precisava permanecer na unidade, em razão de ser mais perto da universidade [ela estudava direito na UFPB, em João Pessoa, à época].
Mirella, em depoimento

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Foi nesse cenário que ela decidiu gravar um vídeo, e o publicou no YouTube no dia 16 de setembro de 2021. O vídeo viralizou e gerou debate na corporação.

Colegas depuseram no processo e afirmaram que Mirella não tinha problemas no trabalho. Esses depoimentos também ajudaram a justiça a entender que não houve crime no vídeo divulgado por dela.

"Os elementos de prova colhidos, inclusive testemunhais, conduzem à conclusão inequívoca de que não houve dolo na conduta da acusada", diz a sentença.

Não se pode extrair da conduta praticada pela acusada a configuração do tipo penal. Não há crítica dirigida a ato específico de superior, não há publicação de documento ou ato oficial, tampouco se observa ataque ao princípio da disciplina militar; mas sim, um relato pessoal, motivado por experiências enfrentadas no exercício da função e marcado por sentimentos de angústia e sofrimento psicológico.
Francisco de Assis Galindo de Oliveira, relator do processo, na sentença

Mirella na sede da OAB, em João Pessoa
Mirella na sede da OAB, em João Pessoa Imagem: Arquivo pessoal

Mudança de postura do MP-PE

Segundo Quintino Geraldo Diniz Melo, promotor da 22ª vara de Justiça Criminal da Capital/Justiça Militar, a mudança de postura do MP-PE ocorreu no decorrer do processo, quando o caso foi sendo analisado com cuidado.

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"As informações que a Central de Inquéritos tinha não permitiam a absolvição sumária de Mirella. Ademais, desde o início ela confessou o fato e a autoria. Por isso ela foi denunciada. No transcorrer da instrução processual, porém, foram colhidas mais informações, de modo que o Promotor que fez a sustentação oral no julgamento teve tranquilidade para pedir a absolvição fundamentadamente", diz.

Ele afirma que, apesar de reconhecer a possibilidade de possíveis crimes por assédio a Mirella, não houve apuração do fato. "Ela recusa-se a nomear o assediador e prestar depoimento contra ele", afirma.

Muitas vezes a mulher não quer a punição do assediador, mas tão somente que ele pare. Foi o que Mirella tentou ao denunciar o que estava acontecendo mas, infelizmente, não obteve ajuda da instituição Polícia Militar.
Quintino Geraldo Diniz Melo

A coluna também questionou se ele pretendia fazer alguma recomendação à PM após o caso para evitar repetições, mas ela alegou que a promotoria da Vara Militar não tem a atribuição de expedir recomendações. "A verdade é que essas instituições ainda não estão devidamente preparadas para receber mulheres", diz.

É preciso que tenham um canal para ouvir essas mulheres assediadas, ajudá-las e ter uma política de prevenção ao assédio sexual. Em seguida ao assédio sexual geralmente vem o assédio moral, devido a negativa da vítima. Uma atuação meramente punitiva, no âmbito do processo penal, não é suficiente para proteger as mulheres. É preciso uma política institucional de prevenção ao assédio sexual.
Quintino Geraldo Diniz Melo

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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