Como o Comando Vermelho agiu para eleger prefeito e 'tomar' cidade do CE
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Na manhã do dia 2 de setembro de 2024, Rikelme —apontado como braço-direito do líder do CV (Comando Vermelho) no Ceará— enviou um alerta no grupo de WhatsApp chamado "Jogadores natos" avisando: "O chefe amanheceu doido por problema".
A fala era referente à determinação de seu chefe, Doze ou Paulinho Maluco, apelidos de Anastácio Ferreira Paiva, que queria todos os bairros de Santa Quitéria (CE) pichados até a noite daquele dia com ameaças ao candidato rival à reeleição do prefeito José Braga Barrozo, o Braguinha (PSB) —que venceu a eleição, mas não chegou a assumir o novo mandato e foi preso preventivamente no dia 1° de janeiro. Ele teve a chapa cassada no dia 7 de maio, mas se diz inocente e recorre ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Ceará.
Aquela ordem de Anastácio foi cumprida, e pichações tomaram conta de muros no pequeno município de 40 mil habitantes. Diferente das conhecidas intimidações em comunidades tomadas por facções, o MP-CE (Ministério Público do Ceará) entende que a ação em Santa Quitéria foi inédita em termos de proporção e pretendia tomar o poder da cidade. Até mesmo o debate sobre tráfico de drogas foi paralisado no período.
Provou-se que eles estavam dirigindo a eleição para colocar no poder seus representantes. No caso, eles estavam de fato tentando assumir o Estado de Direito. Seria um 'balão de ensaio', um primeiro domínio [que fariam de cidade]. O caso mostraria que eles podem direcionar uma eleição em qualquer local.
Plácido Rios, subprocurador-geral de Justiça jurídico do MP-CE
Líder do CV é de Santa Quitéria

Anastácio está foragido da Justiça por crimes de homicídio, tráfico de drogas e associação criminosa.
A polícia descobriu que ele vive em uma mansão na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro. Desde dezembro de 2024 houve duas operações para tentar prendê-lo no local, mas ele acabou escapando em ambas.
Segundo Plácido, a principal teoria dos investigadores é que a cidade cearense foi escolhida porque é onde nasceu Doze, apontado como a principal liderança do estado.
As investigações feitas pelas polícias Civil e Federal descobriram que a ação era organizada contra, especialmente, o candidato Tomás Figueiredo (MDB), principal rival de Braguinha. Mas não só a ele: as intimidações chegaram até a Justiça Eleitoral, que teve o muro pichado e também recebeu ameaças.
Em meados de setembro, o Cartório Eleitoral recebeu ligação de um integrante do Comando Vermelho, que se dirigiu a um dos servidores ameaçando atacar a unidade do órgão e matar todos caso a Justiça não parasse com as decisões contra os 'manos' do CV. Até aquele momento não existia qualquer decisão da Justiça Eleitoral contra integrantes da organização criminosa, mas já havia investigações.
Denúncia do MPE
Plácido explica que, em julho de 2024, um carro de luxo foi enviado por Braguinha para Anastácio, e no veículo havia R$ 1,5 milhão para o líder da organização criminosa. Essa seria parte do pagamento para que a operação contra o adversário fosse feita.

Em outubro de 2024, Braguinha venceu com 11.292 votos (41,01% do total válido), seguido por Tomás, com 8.106 votos, e pela candidata Dra. Lígia Protásio (PT), com 7.991 votos.
Durante as investigações, uma das pessoas presas aceitou fazer um acordo de colaboração com o Gaeco e passou detalhes sobre Doze e outros integrantes do CV. "Através dessa fonte tivemos informações relevantes, como a confirmação de onde estavam os cabeças do grupo", diz o subprocurador-geral do MP-CE.
Investigação detalha ações
O UOL teve acesso a documentos que subsidiaram a decisão da Justiça Eleitoral que cassou o mandato de prefeito e vice. Eles detalham ações orquestradas na cidade, com moradores expulsos às vésperas da eleição por serem apoiadores de rivais.
A denúncia narra ainda que foram recorrentes os "episódios de ameaças a eleitores por meio de mensagens de áudio, distribuídas através de redes sociais, tais como Instagram e Whatsapp".
Um nome de confiança do CV no Rio foi enviado a Santa Quitéria, a mando das lideranças, para comandar as "coações eleitorais e diversos outros crimes comuns em Santa Quitéria e municípios vizinhos".
"[Houve] intimidação de eleitores para que apoiassem e votassem nos candidatos apoiados pela facção criminosa, tudo sob pena de sofrerem depredação em seus estabelecimentos comerciais e seus veículos", diz.
O nível de intimidação era tão grande que as pichações que eram apagadas por agentes da força pública eram refeitas imediatamente. As frases pichadas eram "Fora Tomas", "Tropa do CV" e "Tropa do Paulinho Maluco".

Um relatório da polícia capturou as ordens, e uma delas era que casas que tivessem fotos do Tomas deveriam ser pichadas com spray, entre outras ações citadas:
- "Carro pode quebrar os vidros"
- "Moto pode quebrar os retrovisores"
- "Problema de quem for votar nele"
- "Quando forem pichar não pode botar o nome do Braga não ok"
"A intenção dos criminosos era amedrontar não apenas o candidato e seus apoiadores/eleitores, mas também instituições, servidores e autoridades, em total atentado à normalidade e legitimidade do pleito", cita a decisão que cassou Braguinha.
Com a proximidade da eleição, um alerta mais forte veio dia 29 de setembro, na semana anterior da eleição. "Era chegado o momento de deflagrar o 'Plano B', consistente em efetuar disparos de armas de fogo contra portas de algumas residências de Santa Quitéria", cita a denúncia ao capturar mensagens de membros.
Tal candidato era aliado de pessoas envolvidas com a organização criminosa e até mantém algumas dessas pessoas nos quadros da administração pública, razão por que resulta notória a movimentação do crime organizado para se expandir cada vez mais e deixar de ser apenas o 'poder paralelo', passando a se infiltrar nas estruturas do próprio Estado.
MPE

Braguinha, que nega as acusações, recorreu da decisão no último dia 19, mas o juiz Magno Gomes de Oliveira, da 54ª Zona Eleitoral, negou o recurso, e o caso está agora no TRE, sob relatoria do desembargador Francisco Érico Carvalho Silveira. O UOL procurou a defesa do prefeito, mas não recebeu qualquer resposta até a publicação dessa reportagem. O espaço segue aberto.
Nota da defesa de Braguinha após a cassação:
"A defesa do prefeito reeleito José Braga Barrozo informa que recebeu com tranquilidade a decisão proferida pelo juiz eleitoral de Santa Quitéria, que julgou procedente a Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), resultando na cassação do mandato conquistado nas urnas em 2024.
Ressaltamos que a referida decisão é passível de reforma mediante os recursos que serão devidamente manejados nas instâncias superiores da Justiça Eleitoral. A defesa mantém plena confiança na Justiça Eleitoral e acredita, com firmeza, na improcedência das acusações que motivaram o pedido de cassação.
Por fim, destacamos que todas as medidas cabíveis já estão sendo adotadas para a salvaguarda dos direitos políticos do prefeito reeleito, na certeza de que a verdade e a justiça prevalecerão."
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