Justiça da PB cassa prefeito e vice por envolvimento com facção criminosa
Ler resumo da notícia

A Justiça Eleitoral da Paraíba cassou os mandatos do prefeito, do vice e de um vereador de Cabedelo (na Grande João Pessoa) após o MPE (Ministério Público Eleitoral) denunciar que líderes da facção criminosa "Tropa do Amigão" receberam cargos na prefeitura em troca de apoio eleitoral em 2024. O ex-chefe do Executivo do município também se tornou inelegível.
Parte das nomeações teria sido paga por uma empresa terceirizada com recursos do Fundo Municipal de Saúde.
A sentença condenatória por abuso de poder econômico e compra de votos é da juíza Thana Michelle Carneiro Rodrigues, da 57ª Zona Eleitoral, e foi dada anteontem. Foram condenados com a perda dos cargos o prefeito André Coutinho (Avante), a vice Camila Holanda (PP) e o vereador Márcio Silva (União Brasil), que ainda terão de pagar multa de R$ 40 mil cada um, "dada a gravidade da conduta".
A decisão também declarou a inelegibilidade por oito anos do ex-prefeito Vitor Hugo Castelliano (Avante), que apoiou André em 2024. Hoje, ele exerce o cargo de secretário de Turismo de João Pessoa. Todos os acusados alegam inocência e recorreram ou vão recorrer da decisão (veja notas abaixo).
A exposição de importantes e conhecidos integrantes da organização criminosa em cargos e posições influentes junto à Administração Municipal, por si só, deslegitimou tanto o mandato popular à época vigente quanto o vindouro, seja porque contaminou a liberdade de escolha dos representantes do povo, impingindo-lhes medo pelo sangue escorrido nas ruas, muitas vezes de pessoas sem qualquer ligação ao tráfico de drogas.
Thana Michelle Carneiro Rodrigues em sua decisão

Operação desbaratou esquema
O esquema em Cabedelo ficou conhecido na operação En Passant, deflagrada pela PF em 17 de outubro de 2024, logo após a eleição municipal.
Consta do inquérito policial que durante sua gestão [de Vitor Hugo], foram nomeadas diversas pessoas com vínculos familiares com lideranças do tráfico local para cargos comissionados na Prefeitura, revelando ao menos uma tolerância ativa —atos assinados pelo investigado em pessoa— com a infiltração da criminalidade na administração pública.

O criador e líder da facção, Flávio de Lima Monteiro, conhecido como "Fatoka", está foragido. Segundo a investigação, ele está refugiado em um reduto do CV (Comando Vermelho, parceiro do grupo paraibano) no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, de onde exerce o comando da "Tropa do Amigão".
Uma das beneficiárias com cargo público foi Marcela Pereira da Silva, apontada na denúncia como filha afetiva de Fatoka. Ela chegou a ser secretária-adjunta de Ação Governamental na gestão de Vitor Hugo e, segundo apurou a polícia, mantinha contato direto com o então candidato André Coutinho. Para o MP, isso demonstrou "sintonia e aceitação do apoio oferecido pela facção".
Uso de verba de saúde
A denúncia cita que um dos mecanismos utilizados para nomear pessoas com histórico de acusações de crimes foi contratar uma empresa terceirizada financiada com recursos do Fundo Municipal de Saúde.
Um dos contratados era "Mago David", considerado o número 2 da facção e com extensa ficha criminal: homicídios, roubo, tráfico de drogas e porte ilegal de arma. Ele foi contratado em 2021 e usava redes sociais para ostentar armas e divulgar a facção. Ele também está foragido e estaria escondido junto com Fatoka no Rio de Janeiro.
Ainda segundo a denúncia, a lista de contratados terceirizados incluía diversos envolvidos em tráfico de drogas ligados ao comando da facção, além de parentes de pessoas com influência no grupo, mas que estão detidas.
Elo era servidora
Segundo a investigação, o elo do líder da facção com o poder público era servidora, que ocupava "cargos de confiança, preservando o capital político e funcional que lhe assegurou a manutenção da influência sobre contratações e promessas de benefícios, em clara instrumentalização da máquina estatal".

No dia seguinte à operação da PF, a servidora foi exonerada por Vitor Hugo, mas segundo a investigação, o prefeito "continuou lhe prestando auxílio, quando indicou ou, no mínimo, permitiu que um assessor jurídico do município de Cabedelo assumisse a defesa da referida investigada".
Compra de votos
A apuração ainda aponta a suspeita de compra de votos e cita que na casa da funcionária da prefeitura, durante a operação da PF, foram achadas "diversas cestas básicas em sacolas e um documento que se tratava de um modelo de ficha de solicitação de emprego".
Em seu celular, a polícia encontrou ainda um encaminhamento de 42 fotografias de comprovantes de votação nas eleições de 2024, como também recibos de pagamento por PIX a eleitores.

De acordo com a sentença, André Coutinho teria se beneficiado diretamente das ações da servidora que atuava na compra de votos, "como também da ação de Victor Hugo, que teria instrumentalizado a máquina administrativa em benefício da coligação", por meio de nomeações e contratações orientadas por interesses eleitorais e facilitado a atuação da funcionária e de outros agentes ligados à facção criminosa.
Veja o que disseram os acusados
Prefeito André Coutinho: "Diante de recente decisão proferida pela juíza da 57ª Zona Eleitoral, venho, na condição de prefeito de Cabedelo, reafirmar meu compromisso com a transparência, a responsabilidade institucional e o respeito à vontade soberana do povo cabedelense, expressiva nas urnas. Porém, por não concordar com a narrativa e as conclusões nela inseridas, apresentarei recurso confiando plenamente na sua reforma.
Seguirei exercendo minhas funções com serenidade, como sempre fiz, acreditando que esse episódio será devidamente esclarecido e superado. Reafirmo meu compromisso e da vice-prefeita Camila Holanda, de continuar trabalhando em prol dos cidadãos de Cabedelo, que nos elegeu com 25.966 votos (66,24%).
A todos os cabedelenses reafirmo que continuaremos exercendo plenamente o nosso mandato legitimamente conferido pelo povo de Cabedelo e que não haverá qualquer alteração ou problemas na continuidade da gestão municipal até o julgamento do último recurso, quando a verdade será restabelecida. Cabedelo está acima de tudo, e meu compromisso com a cidade e com cada cidadão permanece inabalável."
Ex-prefeito Vitor Hugo Castelliano: "Foi com surpresa que recebi, na manhã desta quarta-feira (25), a decisão da Justiça Eleitoral de Cabedelo me tornando inelegível pelos próximos oito anos, mesmo após o pedido de absolvição por parte do MPE. Tenho plena e total confiança na Justiça e vou, junto ao meu corpo jurídico, tomar as providências cabíveis para reverter essa decisão nas instâncias superiores."
Vereador Márcio Silva: "Reafirmamos nosso absoluto respeito às instituições e ao Poder Judiciário, ao mesmo tempo em que confiamos que a justiça analisará os fatos, assegurando a ampla defesa e o contraditório.
À população de Cabedelo, especialmente àqueles que, de forma legítima e democrática, depositaram sua confiança nas urnas, pedimos serenidade e confiança. Este é um momento que exige responsabilidade, equilíbrio e firmeza nos princípios que sustentam a democracia.
A decisão proferida pela juíza da 57ª Zona Eleitoral é parte de um processo judicial em curso, cabendo recurso da decisão, o que será feito com responsabilidade e total respeito às normas legais. Confiamos que, no momento oportuno, todas as explicações serão prestadas e a verdade prevalecerá."
A vice Camila Holanda fez apenas uma postagem no Instagram dizendo que "seguimos trabalhando com o coração cheio de gratidão e o compromisso firme de honrar essa confiança todos os dias". "A voz do povo é soberana — e foi ela que nos trouxe até aqui".
Guerra gerada pelas facções
O "Tropa do Amigão" surgiu em 2023 após cisão de outra facção, a Nova Okaida, o que fez a cidade viver uma "guerra" por territórios, gerando um aumento exponencial de homicídios nos últimos anos. O grupo é aliado do CV.
Homicídios por ano:
2022: 9
2023: 44 (+389% em relação a 2022)
2024: 66 (+50% em relação a 2023)
Com isso, a maior parte da cidade passou a ser controlada pela nova facção vinculada ao CV. Já as áreas do Renascer e Jardim América permaneceram sob controle da Nova Okaida. Essa disputa culminou em um aumento significativo nos Crimes Violentos Letais Intencionais, além de intensificação da apreensão de armas pesadas, sinalizando uma 'corrida armamentista' entre as facções.
Thana Michelle Carneiro Rodrigues em sua decisão
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.