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Carolina Brígido

REPORTAGEM

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"A gente tem que se fantasiar de homem", diz autora sobre roupa em tribunal

Mayra Cotta, uma das autoras de "Mulher, roupa, trabalho - Como se veste a desigualdade de gênero" - Divulgação
Mayra Cotta, uma das autoras de "Mulher, roupa, trabalho - Como se veste a desigualdade de gênero" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

15/11/2021 04h00

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Em entrevista ao UOL, a advogada especializada em gênero Mayra Cotta explica como o código de vestimenta imposto pelos tribunais é discriminatório com as mulheres. No livro "Mulher, roupa, trabalho - Como se veste a desigualdade de gênero", escrito em parceria com a consultora de moda Thais Farage, a advogada conta como as mulheres precisaram se adaptar à estética masculina para serem aceitas nos espaços de poder.

- As mulheres sofrem preconceito no Judiciário quando é imposto a elas um código de vestimenta?

Sim. O terno representa o total estabelecimento e legitimidade dos homens no espaço público. E, para ocuparmos esse espaço, parece que a gente tem que se fantasiar de homem. Caso contrário, a gente está inadequada.

- No STF (Supremo Tribunal Federal), o uso de calça para mulheres só foi liberado em 1997. Antes disso, elas só podiam entrar usando saia ou vestido. Essa liberação foi tardia?

A calça veio como vestimenta das mulheres justamente no momento que a gente passou a ocupar mais massivamente o mundo do trabalho formal. Só que a gente demorou muito para poder usar calça. Na Presidência da República, foi só no governo Sarney, em 1986. Antes disso, as mulheres não podiam ir para o Palácio do Planalto usando calça, só saia. No Tribunal de Justiça de São Paulo, o uso de calça para mulheres foi liberado em 2000.

- Os tribunais costumam ter códigos de vestimenta direcionados especialmente para mulheres. Isso é uma forma de preconceito?

Sim. Tem um capitulo do livro sobre discriminação estética que conta que o presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho) baixou em 2018 uma normativa sobre código de vestimenta que durou menos de 24 horas. O texto dizia que a entrada no tribunal estaria condicionada ao decoro e asseio, impedindo o acesso de pessoas do sexo feminino trajando peças sumárias, tais como shots e suas variações, bermuda, mini blusa, blusas decotadas, minissaias, traje de banho, traje de ginástica, roupas com transparência, calças colantes e calças jeans rasgadas. Para pessoas do sexo masculino, a proibição era só para short, bermuda e camiseta sem manga.

- No caso dos homens, o terno resolve tudo. Mas as mulheres têm milhares de opções de vestimentas formais. Essas variações deveriam ser mais contempladas pelo Judiciário?

Sim. Tem o código masculino, o terno, que está bem estabelecido. E parece que não tem nenhum esforço das instituições em relação às mulheres. Porque, se o terno representa essa total legitimidade da ocupação daquele espaço quase que exclusivamente só por homens, o entendimento sobre as roupas e a adaptação daquele ambiente para a ocupação das mulheres também tem que passar pela diversidade na vestimenta. Os tribunais continuam funcionando como se a gente estivesse há um século, como se fosse um espaço completamente homogeneizado. Se a gente está falando de diversidade de verdade dentro daqueles espaços, isso tem que passar pela roupa. Porque não pode ser pré-requisito para estar ali naquele espaço se fantasiar de homem, fazer mimetismo da masculinidade.

livro, mulher, roupa, trabalho - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Mulher, roupa, trabalho - Como se veste a desigualdade de gênero", de Mayra Cotta e Thais Farage
Imagem: Divulgação

- Se é que deveria mesmo haver uma regra de vestimenta para tribunais, qual a senhora acha que seria uma regra plausível?

Eu acho que o primeiro passo é não ter regras diferentes para homens e mulheres. Indica um problema muito sério criar diferenciação de gênero já no código de vestimenta. Eu nem sou contra código de vestimenta, acho mesmo inadequado você ir de biquíni pro Supremo. Mas a regra tem que ser igual para homens e mulheres e tem que passar por uma adequação ao exercício da profissão. Algo que seja razoável, mas uma razoabilidade que não seja moralista, que não seja simplesmente para manter um espaço de privilégio.

- Além do recorte de gênero, existem outros preconceitos no Judiciário quanto à vestimenta?

Eu advoguei por um bom tempo fazendo audiência da Lei Maria da Penha. Já vi muitas vezes o juiz dar bronca nos assistidos pela forma como estavam vestidos. "Fecha aí essa camisa, você não está me respeitando, porque o botão está aberto", diziam. Às vezes, o cara estava vestindo a melhor camisa que ele tinha e, mesmo assim, estava faltando um botão. O Judiciário sempre foi um espaço comandado pelas elites políticas e econômicas no nosso país, mas ele existe para servir o povo, então, não pode ser um espaço machista e classista. A roupa não pode ser mais um fator que intimide e torne um ambiente hostil para as pessoas poderem usufruir do Judiciário.

- A senhora falou que não deveria ter uma regra diferente de vestimenta para homens e mulheres. Como funcionaria uma regra comum para todos os gêneros?

Seria uma regra fixa de vestimenta com o que pode e o que não pode, o que é adequado e o que não é. Por exemplo: traje de banho é algo que não tem gênero. Tem tribunal também que não permite regata. Eu acho isso meio estranho, especialmente porque a gente está em um país tropical. Mas, se for para proibir algo, que seja para os dois gêneros. É preciso ter regras gerais que valham para todo mundo, de uma forma não discriminatória.

- A senhora já foi barrada em algum tribunal pela roupa que vestia?

Sim, em 2011, eu e a Manuela D'Ávila fomos barradas na sessão do STF porque a gente estava de calça social e sem blazer. Eu era assessora dela e ela era deputada federal. Impor uso de blazer é uma regra completamente inadequada. Precisar estar de blazer para estar no Supremo, qual é o sentido disso? A gente tem camisas, blusas, um série de possibilidades que não passam pelo blazer, especialmente para as mulheres, de estar condizente com o exercício da profissão.

- Por que a senhora acha que ainda é preciso se vestir de homem para entrar num tribunal?

Essa mentalidade estreita sobre a vestimenta, de criar praticamente um uniforme, vem de uma época em que só tinha homem branco ocupando aquele espaço. O fato de ter uma vestimenta específica para todo mundo usar igual, que é o terno, vem de uma época em que o espaço de fato era muito homogêneo: era só homem branco. Hoje em dia, a gente se propõe a trazer toda a diversidade da nossa sociedade para os espaços de poder. E, se a gente se propõe de verdade a fazer isso, a diversidade vai ser refletida na roupa também. Essa homogeneidade acabou. E que bom que ela acabou. É preciso aceitar a diversidade de gênero, de classe, de crença, de cultura.

- Como vencer essa homogeneidade e fugir do blazer no dia a dia?

A (deputada federal) Talíria Petrone pregou muito a respeito disso no plenário da Câmara dos Deputados. Ela era barrada porque ia de vestido florido de alça, com turbante na cabeça. Mas é o jeito de ela se vestir. Por que ela precisa se fantasiar? Se a gente impõe uma homogeneidade na roupa para todo mundo, a gente está dizendo que a nossa diversidade não é bem vinda ali. A roupa não é só um exercício individualista de você usar o que quiser, é um exercício de fato de construir diversidade e de representatividade ampla nos espaços de poder. Impor o blazer é como dizer: você pode até participar desse espaço, desde que você continue reproduzindo as mesmas coisas que a gente fazia até aqui. Eu não quero participar de um espaço tendo que performar conforme a masculinidade branca.

- Muitos homens reclamam da obrigatoriedade do paletó E da opressão do uso da gravata em um país tropical. A obrigatoriedade do terno também deveria ser banida dos espaços públicos?

Com certeza. A gente precisa descolonizar as nossas roupas. O terno foi imposto pela Europa e faz muito mais sentido no clima de lá. Não dá para impor essa homogeneidade também para os homens. Eu só acho que o terno acaba sendo um espaço de privilegio. É diferente. Quando nós, mulheres, reivindicamos não usar o terno, a gente está reivindicando poder existir naquele espaço como nós mesmas, e não fingindo que somos homens. Quando os homens reivindicam o não uso do terno, eles estão, de certa forma, abrindo mão desse privilegio de estar completamente legitimado naquele espaço. É uma opção mais por um conforto pessoal do que político.

- Para a senhora, usar jeans em tribunais é desrespeitoso?

Não, eu acho que deveria ser liberado.

- O que se alega é que o jeans é pouco formal.

Sim, mas por que a gente está brigando para manter um tribunal formal? O que justifica a formalidade do Judiciário? É uma formalidade que, na verdade, cai para uma elitização do espaço. Quando vc diz que é um espaço formal, você está falando muito mais sobre a elitização daquele espaço do que qualquer outra coisa.

- Ainda sobre a vestimenta exigida das mulheres, muitos escritórios determinam expressamente que as advogadas usem sapato de salto. Por que ainda é necessário que uma mulher use esse tipo de sapato para ser respeitada?

A nossa entrada no mercado de trabalho formal passou por essa conformização de acordo com o padrão da masculinidade branca, mas a gente não pode tentar ser igual aos homens, porque a gente nunca vai ser. A roupa traz os códigos da masculinidade para demonstrar que a mulher tem que performar de acordo com os padrões, sem se esquecer de que é mulher. Então, o terninho vai ser acinturado, a blusa vai ser desabotoada, vai ter um sapato de salto, a calça vai ser um pouco mais justa. A gente tem que tentar ao máximo se aproximar dos homens, sem esquecer do que nós não somos. Essa é a nossa negociação e o salto faz muito parte disso.

- Para a senhora, a exigência do sapato de salto desmerece as mulheres intelectualmente?

Estar ou não de salto não interfere em nada na capacidade de fazer uma sustentação oral. Se a gente obriga as mulheres a usarem salto para trabalhar, a gente está dizendo que o valor do trabalho dela não tem a ver com as competências da racionalidade, que também tem a ver com o corpo. Os homens brancos são o único grupo social que tem o privilégio de não precisar ser um corpo. Eles vão para o ambiente de trabalho e são julgados só pela capacidade de trabalho deles, pela competência. Para nós, mulheres, o nosso corpo sempre chega antes, a nossa roupa sempre chega antes. Sempre somos primeiro avaliadas pela nossa aparência e, só depois, pelos nossos critérios.

- O uso de maquiagem também passa por esse viés?

Já vi também escritórios de advocacia exigindo maquiagem, passando a mensagem de que nosso trabalho está sendo avaliado não pela nossa competência, mas principalmente pela nossa aparência. E isso é muito grave, isso mais uma vez nos recoloca numa hierarquia inferior aos homens brancos, que têm esse privilégio de serem julgados só pela competência.

- Na prática, sabemos que quando uma mulher vai trabalhar maquiada, bem vestida e bem penteada, ela acaba sendo mais respeitada profissionalmente.

Sim, é óbvio que faz diferença, a gente fala isso no livro. O livro não é uma chamada para cada uma ser mártir, usar o que quiser e não usar maquiagem, mesmo que prejudique a carreira. É para entender os problemas e para a gente tentar se organizar coletivamente. A gente só vai conseguir mudar isso se a gente começar a conversar sobre isso. Óbvio que, se usar maquiagem vai me ajudar no trabalho, eu vou usar maquiagem. Mas, de repente, eu consigo no escritório organizar as mulheres e criar naquele espaço uma liberdade maior de não usar salto, de não precisar usar maquiagem. Ninguém muda nada sozinha, não é para ser um momento de sacrifício, de heroísmo. É muito mais para a gente estar atenta e pensar os caminhos possíveis, pensar que tipo de sociedade a gente quer viver.