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Chico Alves

Um governo que não tem respeito pelas palavras

Bolsonaro compartilha vídeo em que homem relaciona Lula às Farc - Reprodução
Bolsonaro compartilha vídeo em que homem relaciona Lula às Farc Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

27/10/2019 12h54

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Houve um tempo em que a palavra de uma autoridade federal tinha grande peso para os brasileiros. Tanto um político eleito quanto alguém nomeado para cargo de alcance nacional pensava dez vezes antes de soltar qualquer frase em público, por medo das conseqüências. Até mesmo para mentir tomava-se o cuidado de construir argumentos minimamente verossímeis, em respeito aos neurônios da audiência.

Esse tempo ficou para trás. Hoje, o governo federal é integrado por pessoas que não dão valor às palavras. Usam o vocabulário sem qualquer responsabilidade, sem se preocupar se o que dizem tem mínima ligação com a realidade ou é baseado apenas em fofoca de botequim, em tuíte de redes sociais.

Os últimos dias foram pródigos em exemplos dessa verborréia irresponsável. Diante do trágico avanço das manchas de óleo nas praias do Nordeste, a única "providência" conhecida por parte do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi levantar absurda acusação contra o Greenpeace. Enquanto centenas de voluntários escavavam as areias do litoral nordestino para tentar limpá-las com as próprias mãos, Salles se ocupava de injuriar os ativistas ambientais, sem qualquer prova. Criticado, não voltou atrás, não se retratou, seguiu em frente com sua péssima gestão, como se nada tivesse acontecido.

Nessa mesma linha bizarra, dois deputados federais do PSL (Daniel Silveira e Bia Kicis) postaram ontem no Twitter um vídeo de origem ignorada, em que supostos guerrilheiros das Farc, encapuzados e munidos de fuzis, chamam o ex-presidente Lula de "comandante". A péssima atuação dos protagonistas e todo o contexto da cena deixam claro que se trata de uma farsa. Alertados para o mico que pagavam, os deputados excluíram os tuítes. O próprio presidente Jair Bolsonaro compartilhou a postagem e depois apagou. Mais uma vez, nenhuma retratação, nenhum pedido de desculpa.

Antes desses vexames, muitos outros pronunciamentos e postagens já haviam mostrado o quanto os governantes e governistas atuais desvalorizam a si próprios. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, segue propagando que a "balbúrdia" impera nas universidades federais. Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, repete que o nazismo foi um movimento de esquerda. A ministra da Cidadania, Damares Alves, ensina que meninas são abusadas porque não usam calcinhas. A lista é extensa e conhecida. A julgar pela pela disposição dessa turma em falar bizarrices, muitas ainda virão.

Em momento tão difícil para o país, é lamentável que personalidades aboletadas em altos cargos no Executivo e no Legislativo usem as palavras com tanto descompromisso. Aos que esperam o anúncio de ações contra o desemprego, o desmatamento, a poluição das praias do Nordeste, certas autoridades só têm a oferecer intrigas, fuxicos, falácias, xingamentos.

A reconstrução da credibilidade na política passa pela revalorização das palavras. Para que as frases dos governantes voltem a ser recebidas com respeito, quem as emite deve ter responsabilidade pelo que fala ou publica.

Nem há ilusões de que a vida pública nacional volte a ter frasistas antológicos como Rui Barbosa ("A liberdade não é um luxo dos tempos de bonança, é, sobretudo, o maior elemento de estabilidade das instituições"), Ulysses Guimarães ("A verdade não desaparece quando é eliminada a opinião dos que divergem") ou Marechal Rondon ("Morrer se preciso for, matar nunca"). Já seria o bastante que os figurões atuais, ao abrir a boca, evitassem o risco de ir parar no anedotário. Afinal, governar é coisa séria.