Bicho perde espaço no Rio enquanto Bahia traz apostas ao século 21
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Em uma calçada no bairro do Cachambi, zona Norte carioca, funciona um dos milhares de pontos de jogo do bicho do estado do Rio de Janeiro.
Instalada em uma mesa de bar, próximo a um supermercado e uma banca de jornal, a jovem que aparenta ter menos de 30 anos recebe apostas de clientes que parecem ter mais de 50.
Perguntada sobre como anda o movimento de apostadores, ela responde com o polegar para baixo.
A mesma pergunta foi repetida a outros quatro bicheiros de pontos diferentes da cidade e as respostas foram parecidas. "Só os velhos apostam, a garotada não quer saber disso aqui", explicou um deles.
A migração para máquinas de videopôquer não compensou a perda, já que atualmente poucos bares desafiam a polícia para mantê-las funcionando.
"A maioria dessas maquininhas está instalada hoje em locais clandestinos, em apartamentos", explica o delegado Gabriel Ferrando, da Delegacia de Combate ao Crime Organizado (Draco), referência no assunto indicada à reportagem pela Secretaria de Estado da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Cartaz do Neymar
Em Salvador, quem entra na loja de apostas no bairro da Barra tem uma boa amostra da variedade de jogos ilegais que os contraventores baianos oferecem.
Um cartaz com uma enorme foto de Neymar sugere ao cliente gastar seu dinheiro em um site de prognósticos sobre jogos de futebol e outros esportes ao redor do mundo. O garoto-propaganda do pôster certamente não tem ciência do produto que anuncia.
Há também dez extrações diárias do tradicional bicho, alguns tipos de rifas e pelo menos duas modalidades de apostas numéricas ao estilo Sena e Quina (loterias piratas, sem a participação da Caixa Econômica Federal).
Além da larga utilização de sites (alguns informam os resultados dos sorteios), também é possível fazer apostas pelo celular.
O bicho tradicional é apenas uma das formas de apostar, não a mais popular.
Talvez por isso, quem vai às lojas da Paratodos, a empresa ilegal montada para explorar o jogo do bicho no estado, constata a presença de muitos jovens. Muitos jogam de casa, através de aplicativos para celulares.
Eixos do bicho no Brasil
As cenas descritas acima, captadas na mesma semana, ajudam a entender por que os bicheiros cariocas vêm perdendo espaço para contraventores de outros estados, especialmente da Bahia.
Além da baixa renovação do público, disputas territoriais para a exploração do bicho tomaram tempo e recursos que os chefões do Rio poderiam ter dedicado apenas ao seu negócio ilegal.
Um obstáculo adicional é o crescimento exponencial de outros tipos de crime, como o tráfico e a milícia, que até pouco tempo eram rechaçados a bala pelos bicheiros. "Hoje, colocam em prática uma espécie de acordo de 'convivência' para continuar funcionando no mesmo território", explica o delegado Ferrando.
No sentido oposto, o esquema dos contraventores de outros estados, em especial os baianos, se adaptou aos novos tempos, tem a tecnologia a seu favor e vai se firmando como opção das novas gerações de apostadores.
Bicho digital
As novidades tecnológicas não ajudam somente os clientes, mas também aqueles que querem ser parceiros da contravenção.
Existem atualmente incontáveis versões de aplicativos para criar bancas de apostas no jogo do bicho, inclusive com tutoriais em vídeo no YouTube.
Um grande filão explorado na Bahia é o site de apostas em resultados de jogos de todo o planeta. Atualmente, essa é a principal fonte de renda desse esquema criminoso.
Os recursos digitais, que os contraventores baianos utilizam há muito tempo, somente há poucos anos foram instalados no Rio.
Junte-se a isso uma ousadia que os bicheiros cariocas nunca tiveram. Além de manter os jogos em lojas que funcionam sem qualquer repressão policial (algumas estão registradas como casas lotéricas formais, outras nem isso), os bicheiros baianos criaram jogos similares à Quina e à Sena, o Super 5 e o Super 6, que têm cartelas bem parecidas com as loterias originais.
Procurada pelo UOL para que informasse como anda a repressão aos jogos ilegais e se houve ocorrência recente, a Secretaria de Segurança da Bahia respondeu apenas que não tem "registro de ocorrências relacionadas a este tipo de contravenção no Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco)".
As guerras do Rio
Há décadas, a estrutura da contravenção no Rio continua a mesma. Os bicheiros dividem o estado em áreas de atuação, onde cada um explora os pontos. Por muitos anos, a disputa pelo domínio territorial motivou guerra entre eles e houve muitas mortes por causa disso.
O caso recente de maior repercussão foi o atentado contra o bicheiro Rogério Andrade, na Barra da Tijuca, em 2017.
Na ocasião, uma bomba mandou pelos ares o carro em que viajava o filho de Andrade, de 17 anos. "O autor do atentado foi um ex-PM, integrante da quadrilha do próprio contraventor, que queria dar um 'golpe de Estado'", explica o delegado Ferrando, que trabalhava então na Delegacia de Homicídios e investigou o crime.
O último assassinato registrado na disputa pelo poder no jogo do bicho aconteceu em 2018, quando o contraventor Myro Garcia foi sequestrado e morto.
A irmã de Myro, Shana, responsabiliza pelo crime o ex-cunhado, Bernardo Bello, que, segundo ela, explora atualmente o jogo do bicho e as máquinas caça-niqueis que eram da família.
Em outubro, Shana denunciou à polícia ter sido alvo de atentado. O medo se justifica: nos últimos anos, quatro integrantes da família Garcia foram assassinados. Nenhum dos crimes foi elucidado.
"Não confio na polícia", disse ela ao jornal carioca Extra.
Chefões do crime e do Carnaval
Essa disputa sangrenta faz com que os contraventores fluminenses deixassem de ser vistos como patrocinadores do que poderia ser um inofensivo jogo de azar para serem encarados como criminosos de alta periculosidade.
Mesmo o simpático papel que desempenham como patronos de escolas de samba, onde têm grande visibilidade como organizadores do desfile do Sambódromo carioca, não conseguiu apagar essa imagem de chefões do crime.
É justamente no Carnaval que os bicheiros se mostram ao Brasil, por meio da TV, seja conduzindo as escolas de samba no desfile da Sapucaí ou no momento da apuração das notas, na quarta-feira de cinzas. No resto do ano, agem com discrição e evitam ostentação.
A exceção é Rogério Andrade, que se desloca pela cidade sempre a bordo de carros importados de luxo e veste-se com roupas italianas caríssimas.
Como se viu pela recente festa milionária que deu no Jockey Club para comemorar o primeiro aniversário do filho mais novo, com Ludmilla como grande atração, ele não tem qualquer problema em ostentar.
Depois de ter sobrevivido a inúmeros atentados, Andrade toma cuidados extremos. Já chegou a usar mais de 20 seguranças em um evento, só escolhe em cima da hora o carro que vai usar e quando frequenta restaurantes nunca se senta próximo de locais com vidraças, onde poderia ser alvo de um tiro.
Bicheiros baianos se organizaram
Na Bahia, os contraventores não se expõem como acontece no Rio.
Não há guerra pelos pontos de bicho nem ações culturais, como as que acontecem nas escolas de samba cariocas.
Essa discrição permitiu que o negócio dos bicheiros se integrasse ao cotidiano baiano a ponto de muita gente sequer lembrar que é ilegal. Isso explica o fato de tantas lojas de apostas funcionarem livremente sem que sejam alvo da polícia.
Esse modelo de administração da contravenção foi determinado quando, há 29 anos, criou-se a Paratodos, empresa ilegal que tem cotas dívidas entre os chefões do bicho.
"A Paratodos Bahia foi criada em 04/06/1990, sem registro legal, para gerir de forma monopolista o jogo do bicho nas cidades de Salvador e Lauro de Freitas (município vizinho à capital), explorando uma atividade ilícita, citada no Código Penal Brasileiro através do artigo 58 como contravenção penal, passível de prisão e multa", explica o professor Jair Nascimento Santos, da Universidade do estado da Bahia, em sua pesquisa "Paratodos Bahia, uma organização no jogo do bicho".
No texto, ele explica que a "organização contraventora" congrega "43 sócios-cotistas com os mais diversos percentuais de participação". Apesar disso, informa Santos, o voto de cada um tem o mesmo peso.
Revela a pesquisa que a Paratodos empregaria 10 mil pessoas, que são "amparados por sistema próprio de assistência e benefícios sociais, extensivos às famílias dos empregados".
O levantamento de Santos constatou que a organização tem sede própria na orla marítima da capital baiana e de lá "espalha-se pelas duas cidades através de 20 centrais e 2215 pontos em 151 bairros de Salvador e 2 de Lauro de Freitas".
Com esse acordo escrito (mas, obviamente, não legalizado) praticamente não há conflitos entre os bicheiros baianos. Raramente eles são vistos nas páginas policiais.
O último registro de repercussão foi a prisão, em 2013, do empresário Adilson Santana Passos Júnior, dono da empresa Cellcred, que atua no ramo de recarga para telefones pré-pagos móveis e fixos, e de seu contador.
Em operação realizada conjuntamente por policiais e procuradores do Ministério Público da Bahia, Pará e Rio de janeiro, eles foram acusados da exploração ilegal de jogos de azar, como o jogo do bicho.
O delegado paraense Rilmar Firmino explicou na época que a quadrilha montou um sofisticado esquema de apostas e vendas de recargas de celular no Pará, Rio de Janeiro e Bahia.
"Os apontadores [que registram as apostas] paraenses faziam uso de máquinas e tecnologia fornecidas por empresas baianas que lhes possibilitavam fazer a aposta do jogo do bicho e também a venda de crédito de recarga de celular", detalhou o policial.
O funcionamento pacífico da Paratodos permitiu que os contraventores não precisassem gastar dinheiro e munição com disputas de território e pudessem investir somente no aperfeiçoamento do negócio, com novas modalidades de jogos. Isso tem rendido cada vez mais dinheiro e poder.
Muitos deles, inclusive, prevêem que em poucos anos não existirá mais o tradicional jogo do bicho, aquele criado no Rio de Janeiro, em 1892, pelo Barão de Drummond.
A figura do apontador sentado na rua, anotando a aposta a mão será imagem do passado. Somente os tipos mais modernos de apostas vão atrair a clientela.
Apesar da fortuna que ainda têm e do poder que exercem, nessa corrida tecnológica os bicheiros cariocas ficaram para trás.
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