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Chico Alves

O juiz de garantias e o Saci-Pererê

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro - Marcelo Camargo/Agência Brasil Brasilia-DF
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil Brasilia-DF

Colunista do UOL

03/01/2020 12h02

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Saci-Pererê, Mula-Sem-Cabeça e Lobisomem perderam feio. A lenda mais comentada no Brasil atualmente é "juiz de garantias serve para manter a impunidade". É assim que figurões chegados a execuções sumárias têm assombrado os incautos.

O principal difusor dessa lenda é Sergio Moro, o ministro da Justiça e Segurança Publica. Um parecer elaborado por sua pasta e encaminhado ao presidente Jair Bolsonaro alega que a inovação poderia "prejudicar investigações de crimes complexos, como corrupção e lavagem de dinheiro". Moro está pessoalmente empenhado em uma cruzada para derrubar a figura do juiz de garantias.

Em apoio ao ministro, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e alguns parlamentares foram ao Supremo para tentar barrar a medida, que foi incluída na chamada Lei Anticrime, sancionada por Bolsonaro.

Alegam tecnicalidades, mas o motivo real é a crença de que a novidade vai cercear o trabalho dos magistrados. Querem manter o poder absoluto dos togados, uns porque deixarão de poder fazer com o destino das pessoas o que lhes der na telha, outros porque jogam para a galera das redes sociais. Há alguns dias, reclamando do juiz de garantias, tuiteiros em fúria levaram ao trend topics críticas a figuras tão politicamente opostas como o presidente Bolsonaro e o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ).

Como a maioria dos adultos deve saber, é saudável duvidar de qualquer um que conte ter visto um lobisomem. É preciso fazer o mesmo com quem nos quer assustar com interpretações catastróficas sobre o juiz de garantias.

Opinião bem diferente de Moro, da AMB e da Ajufe têm 50 juízes federais que assinaram uma carta em apoio à medida. Em um trecho do texto chancelado pelo grupo, que inclui sete desembargadores, está escrito que a instituição do juiz de garantias é "um passo decisivo para a superação do processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz se confunde com a do investigador/acusador, indo ao encontro do modelo acusatório consagrado na Constituição da República".

Alertam para os perigos da condução de uma ação em que "Deus invade o Estado laico e conclama a todos para a cruzada metafísica contra um inimigo etéreo'. Esse heroísmo de toga nos faria "abandonar a construção moderna de um Poder Judiciário independente, imparcial e afirmativo dos direitos fundamentais".

Argumentam que a novidade ajuda na "preservação da imparcialidade do juiz de julgamento" e "representa a qualificação da garantia do juiz imparcial tal como compreendida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao interpretar o artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos".

Enxotam, assim, a assombração que atemoriza os mais impressionáveis. Afinal, queremos um processo penal inquisitivo, a confusão entre investigador e acusador, juízes parciais ou queremos uma Justiça realmente justa?

Não há lógica em dizer que um outro magistrado acompanhando o processo poderia livrar culpados de sua pena. O mais provável é que aconteça justamente o contrário.

Lógica, porém, não é o forte das discussões sobre o assunto. Assim como não entendo como nas lendas a Mula-Sem-Cabeça pode ser tão falante e ainda soltar fogo pelas ventas (afinal, se não tem cabeça, como consegue?), também não compreendo como o juiz de garantias, que existe em tantos países com sucesso, poderia fazer mal à nossa prática judiciária.

Os contadores de histórias continuarão a disseminar suas fábulas. Acredite quem quiser. A verdade verdadeira é que os sacis não existem.