Curió e Bolsonaro têm mesmos ideais, diz irmã de guerrilheira morta no Pará
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Numa tarde de abril de 1974, a camponesa Antônia Ribeiro da Silva ouviu o barulho de um helicóptero pousando na mata perto de sua casa, localizada na cidade de São Geraldo do Araguaia, no Pará. Pouco depois, chegavam ao seu quintal quatro militares do Exército. Conduziam uma jovem que tinha as mãos amarradas.
Um dos homens, o coronel Sebastião Curió, comandante do grupo, perguntou a Antônia por seu irmão, que não estava. Os militares, então, disseram que iam procurá-lo e se foram, levando a mulher.
Vinte minutos depois, o som de vários tiros ecoou na mata.
Assim foi executada Dinaelza Soares Santana Coqueiro, de 21 anos. Filiada ao PCdoB, guerrilheira que resistia à ditadura, conhecida como Maria Dina, ela foi torturada durante dois dias antes de ser levada, dominada e incapaz de oferecer resistência, ao lugar onde seria morta. O corpo não foi encontrado.
Na época, o movimento armado de resistência à ditadura militar já tinha sido praticamente desbaratado. A chamada Guerrilha do Araguaia se manteve na região Norte e Centro-Oeste desde fins da década de 1960 até o início dos anos 1970. A maior parte de seus membros era do PCdoB e o grupo se inspirava em táticas usadas na Revolução Cubana e na Revolução Chinesa.
As Forças Armadas começaram a combater os guerrilheiros em 1972. A violenta estratégia adotada motivou a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2010. O Tribunal concluiu que o Estado brasileiro é responsável pelo desaparecimento de 62 ativistas e camponeses entre 1972 e 1974, já que nenhum dos culpados foi punido.
A descrição do assassinato de Dinaelza foi feita pelo próprio Curió ao jornalista Leonêncio Nossa (autor do livro "Mata!") e pela testemunha, a camponesa Antônia, ao Ministério Público Federal. Por isso, o militar, hoje na reserva, foi denunciado pelo MPF por homicídio e ocultação de cadáver.
Sob o peso da acusação de vários crimes como esse, Sebastião Curió Rodrigues de Moura, conhecido como "Major Curió", foi recebido na segunda-feira no Palácio do Planalto pelo presidente Jair Bolsonaro com toda pompa e circunstância. Locomovendo-se em cadeira de rodas, por causa de um câncer, conseguiu audiência fora da agenda.
"Fiquei perplexa. Lamento que um assassino, criminoso, torturador seja recebido pelo presidente da nação que foi eleito pelo voto do povo", afirma Diva Santana, irmã de Dinaelza. "Curió deveria estar cumprindo pena pelos seus assassinatos".
Diva é conselheira da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do governo federal e denuncia o esvaziamento das funções do grupo.
Não há reuniões desde novembro e os representantes indicados na gestão de Bolsonaro já manifestaram o desejo de encerrar a comissão, que tem como uma das funções corrigir as certidões de óbito das vítimas da ditadura para reconhecer que tiveram morte violenta causadas pelo Estado.
"Bolsonaro e Curió têm os mesmos ideais", define Diva.
Para o governo, Curió é herói
A postagem feita pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência que documentou a visita trata Curió como "herói". Por conta disso, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão pediu abertura de procedimento para responsabilizar por prática de ato de improbidade administrativa o secretário Fábio Wajngarten.
Os elogios de Bolsonaro a Curió também causaram revolta em parente de outra vítima do militar da reserva. Maria Eliana de Castro teve o irmão, Antonio Teodoro, conhecido como Raul, executado na selva do Pará. O jovem de 28 anos foi mais um a ter Curió e seus homens como algozes.
Ela diz que tentou evitar ao máximo as informações sobre o encontro de Curió a Bolsonaro. "Não me surpreende, já que humanidade não é o forte do presidente", diz Eliana.
Pela morte do rapaz, o "Major" foi denunciado pelo MPF por homicídio. Ela, no entanto, diz ter pouca expectativa quanto ao processo. "Não tenho esperança de que haverá justiça para o meu irmão".
O extermínio de Antonio, também filiado ao PCdoB, foi parecido com o de Dinaelza. Capturado e depois torturado, ele foi levado com outro preso para uma fazenda na cidade paraense de Marabá.
Um dos militares que participou da execução foi ouvido pelo jornalista Policarpo Junior, da revista Veja, em 2009. Segundo contou, ele e outros homens caminharam com os prisioneiros longamente pela mata, até os colocarem amarrados e sentados em uma área isolada.
Repentinamente, relatou o entrevistado, Curió gritou: "É agora!". Em seguida, disparou o fuzil Parafal na cabeça de Antonio. Os outros oficiais fizeram o mesmo: descarregaram a munição nos dois. "Parecia um pelotão de fuzilamento", disse à revista.
"No total, há seis denúncias ajuizadas pelo MPF especificamente contra o Curió, pela prática de crimes de desaparecimento forçado -- sequestro, homicídio qualificado e ocultação de cadáver -- contra 13 vítimas", diz o procurador da República Tiago Modesto Rabelo.
Ele lamenta que todos os processos abertos tenham sido trancados na Justiça sob alegação de prescrição ou levando em conta a Lei de Anistia. "Estamos recorrendo, já que o que denunciamos são crimes permanentes e contra a humanidade, em que não cabe prescrição e nem anistia", explica Rabelo.
Apesar de tantas adversidades, Diva não vai parar de buscar punição para o assassino de sua irmã. "Essas dificuldades só aumentam minha vontade de continuar lutando para que criminosos como Curió sejam presos", afirma.
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