Topo

Chico Alves

Em mais um manifesto, militares da reserva só enxergam erros de um lado

Farda de general de Exército, com quatro estrelas - Reprodução
Farda de general de Exército, com quatro estrelas Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

19/06/2020 11h46

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Dando sequência à profusão de manifestos que o país tem assistido nas últimas semanas, militares da reserva das Forças Armadas, simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro, lançaram mais um documento em apoio ao governo e com críticas aos poderes Judiciário e Legislativo. O grupo denominado "504 Guardiões da Nação" divulgou ontem o texto, assinado por oficiais das três forças e civis. A novidade é que o abaixo-assinado tem também a participação de praças.

Como costuma acontecer nesse tipo de texto, os signatários se apresentam como cidadãos acima dos demais. No manifesto, definem-se como "verdadeiros destinatários e guardiões da Constituição Federal" que estão indignados com o que identificam como ameaça para a nação. O que os faz mais "verdadeiros" que aqueles que discordam deles? Talvez a própria convicção, o que, por si só, não deveria ser suficiente para que pessoas razoáveis se autoproclamassem dessa forma.

O alegado risco que os levou a publicar o manifesto viria de "escalada irracional de manobras pouco republicanas" que estaria em curso para a cassação da chapa presidencial vencedora, baseada em "casuísmos e entendimentos contraditórios à segurança das garantias institucionais e dos direitos humanos".

Não identificam, porém, como manobra "pouco republicana" alguns gestos do presidente, como aquele denunciado pelo ex-ministro Sergio Moro (até pouco tempo idolatrado), de interferir em investigações que envolvem seus filhos. Pensariam o mesmo se o presidente fosse Lula ou Fernando Henrique Cardoso?

O texto prossegue dizendo que "a sociedade já não suporta assistir diariamente a divulgação de atos do Legislativo e do Judiciário para inviabilizar os planos do Poder Executivo destinados à recuperação econômica e moral do Brasil". Não citam nenhum exemplo.

É possível mostrar casos inversos. Como quando o Congresso tocou a incensada reforma da Previdência, apesar de toda a sabotagem e desinteresse do Executivo sobre a matéria.

Será que colaboram para a recuperação econômica os reiterados ataques à China feitos por integrantes do governo e filhos de Bolsonaro? Como o próprio vice-presidente Hamilton Mourão reconhece, o país é simplesmente o maior parceiro comercial brasileiro.

Quanto à recuperação moral, o que dizer de um presidente que tentou indicar um filho completamente despreparado à embaixada do Brasil nos Estados Unidos, alegando publicamente que pretendia dar à sua prole o "filé"? Ou que tenta constranger a Polícia Federal por fazer seu trabalho apenas porque seus filhos são o alvo da investigação?

Ajuda na recuperação moral a saraivada de ofensas que o guru de Bolsonaro, com tanta influência no governo, lança repetidamente sobre generais, ministros e quem quer que discorde dele? As diatribes, xingamentos e ataques à reputação feitos por bolsonaristas nas redes sociais estão nos manuais de "moralidade" dos idealizadores do manifesto?

Os autodenominados "guardiões" terminam citando o Parágrafo Único do Artigo 1º da Constituição, onde se lê que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", para emitir "um enérgico repúdio por sermos governados dissimuladamente por grupos inescrupulosos, formados por cidadãos eleitos com um único voto, concedido por conveniência ou nepotismo, em cumplicidade com parlamentares que não honram os diplomas conferidos por seus eleitores".

Sobre esse trecho: ministros do Supremo são eleitos por um único voto — o do presidente da República — há décadas. Seria bom saber se alguém que assina o documento emitiu objeção a esse sistema anteriormente. Ou só passa a ser ruim quando contraria o presidente que apoiam?

É preciso lembrar também que, apesar de ter a maioria dos ministros indicados por presidentes petistas, o Supremo referendou o impeachment de Dilma Rousseff e negou habeas corpus a Lula, que acabou preso.

Sobre parlamentares que "não honram os diplomas", não se pode deixar de destacar que a maior parte dos integrantes do Congresso atual foi eleita por se alinhar à campanha de Jair Bolsonaro, mesmo sem participar de seu partido.

Mais dúvidas. Desse grupo a que o manifesto desqualifica fazem parte os deputados e senadores do Centrão, que o governo agora corteja e com quem divide cargos em estatais e outros postos com orçamentos polpudos? Ou as críticas são endereçadas apenas aos congressistas que não concordam com Bolsonaro?

O tal manifesto divulgado ontem foi articulado por parlamentares bolsonaristas e pessoas próximas ao presidente. Imaginava-se que teria efeito bombástico, mas a prisão de Queiroz estragou os planos. Um dia depois de lançado, teve algum eco no Twitter.

Esse tipo de manifestação faz parte da liberdade de expressão. No entanto, o fato de o documento ter majoritariamente militares (mesmo da reserva) entre seus signatários e a palavra "guardiões" no título certamente fará muitos brasileiros suspeitarem de intenções belicosas, que não combinam com a democracia. Espera-se que essa seja uma leitura equivocada.

Voltando ao início do texto: nesse, como em outros manifestos, militares têm-se apresentado como "verdadeiros guardiões da Constituição", seres acima do bem e do mal, mesmo quando não usam tal expressão. A categoria militar já prestou inestimáveis serviços ao país, assim como cometeu erros gravíssimos — e isso prova, para surpresa de alguns, que os fardados são de carne e osso.

Seja moral ou intelectualmente, não estão nem um milímetro acima dos civis.

Os melhores militares são justamente aqueles que têm consciência disso e se propõem a caminhar ao lado da população — e não só da parcela que apoia este ou aquele presidente — para unir o país e fazê-lo avançar.

Ameaças e bravatas não colaboram em nada para esse objetivo.