Topo

Chico Alves

George Floyd é multiplicado por 700 no Rio

João Pedro, morto em maio pela polícia quando estava dentro de casa, em São Gonçalo - Reprodução/Twitter/@_danblaz
João Pedro, morto em maio pela polícia quando estava dentro de casa, em São Gonçalo Imagem: Reprodução/Twitter/@_danblaz

Colunista do UOL

22/06/2020 17h43

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Há muitos séculos, as sociedades civilizadas formaram um consenso sobre o modo de agir diante de um crime ou da suspeita de crime. Em caso de delito violento, o infrator é preso, a polícia faz uma investigação, a Justiça avalia e decide a punição a ser aplicada. Esse sistema foi criado para encerrar os tempos de barbárie, quando o mais forte julgava e exterminava quem lhe desse na telha. Pouco importava se o sujeito era culpado ou não.

Infelizmente, em muitos lugares esse avanço civilizatório tem sido anulado. O exemplo mais atualizado de retrocesso foi a morte de George Floyd, o homem negro americano asfixiado por um policial branco que pressionou durante oito minutos o joelho sobre o seu pescoço. Como se sabe, o homicídio de Floyd desencadeou uma onda de revolta antirracista em vários países, com manifestantes enfrentado a pandemia de coronavírus para ir às ruas protestar. Brancos e negros caminharam juntos, inclusive no Brasil.

Brasileiros não precisariam, porém, olhar para os Estados Unidos para se indignar com a violência policial. Fica aqui, em território nacional, o maior exemplo planetário de regressão à barbárie, de selvageria institucional. Números atualizados confirmam isso.

Segundo levantamento do jornalista Matheus Rodrigues, do G1, com base nos dados do Instituto de Segurança Pública, o Rio de Janeiro registrou nos cinco primeiros meses de 2020 o impressionante número de 741 mortes provocadas por ação policial. É o recorde em 22 anos de levantamento.

A marca é mais impressionante ainda se levarmos em conta que estamos há três meses em isolamento social, por causa da covid-19. Com as ruas vazias, os índices de criminalidade caíram drasticamente (a quantidade de homicídios no período é a menor desde 1991). Mesmo assim, a polícia fluminense não para de exterminar, fazendo exatamente o inverso do que deveria ser sua missão, que é dar segurança à população.

Não há quem desconheça as condições inóspitas do trabalho da polícia ao enfrentar quadrilhas de traficantes muito bem armadas. Ninguém quer que os agentes da lei deixem de reagir aos ataques de criminosos, se isso acontecer.

Mas o que ocorre na vida real é que a PM age sem qualquer planejamento ou levantamento de inteligência. A estratégia é não ter estratégia — atirar muito, para matar o inimigo, mesmo ao custo de também tirar a vida de moradores da favela que nem são seus "alvos" originais.

Tem sido desse jeito há muito tempo.

Assim morreu Maria Eduarda, de 13 anos, alvejada dentro de uma escola, em Acari, em 2017. Ágatha Félix, de 8 anos, levou um tiro pelas costas quando estava dentro de uma Kombi, no Complexo do Alemão, no ano passado. Também João Pedro, de 14 anos, foi assassinado pela polícia há um mês, quando estava dentro de casa, na favela do Salgueiro, em São Gonçalo, onde tentava ficar a salvo do coronavírus.

Esses são apenas três exemplos de crianças vítimas das "operações de guerra" que atordoam os moradores das comunidades fluminenses. Houve muitas outras. E há adultos, também. Inúmeros, de várias idades.

Além dos policiais que cruelmente apertam os gatilhos, a matança institucionalizada tem outros autores. Naturalizar as tragédias repetidas é liberar os instintos brutais de quem usa farda. Como podemos nós, os que moramos longe da favela, tocarmos o cotidiano normalmente diante de tanta desvalorização da vida?

Talvez porque as vidas em jogo não sejam as da classe média e da classe abastada, mas principalmente as dos negros e pobres das favelas. Foi a população do Rio de Janeiro, esse recanto do Brasil com fama de cordial e alegre, que elegeu como governador alguém com discurso de incentivo à violência policial — que já não era pequena antes dele.

Na cabecinha de Wilson Witzel, a única forma de combater a criminalidade é patrocinando ofensivas sanguinárias. Como resultado, 1.810 pessoas foram mortas pela polícia no ano passado. Boa parte da população o aplaude por isso — o risco de impeachment que corre não tem nada a ver com esse extermínio.

Também somos nós, os que nos indignamos com a morte de George Floyd mas encaramos o banho de sangue local como parte inevitável do destino, que incentivamos essas mortes. Normalizar a barbárie é uma forma sutil de cumplicidade. Infelizmente, é isso que fazemos todos os dias.