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Chico Alves

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Elogios à ditadura anteciparam o dia da mentira

Farda de general de exército, com quatro estrelas - Reprodução
Farda de general de exército, com quatro estrelas Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

01/04/2022 13h19

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Segundo a versão mais conhecida, o 1° de abril passou a ser marcado como dia da mentira em 1828, quando o jornal mineiro "A Mentira" publicou na capa falsa notícia sobre a morte de Dom Pedro I. Volta e meia, porém, essa data dedicada às cascatas é antecipada. A proximidade com o 31 de março, quando há 58 anos os militares consumaram o golpe de Estado, tem provocado uma onda de invencionices por parte das viúvas da ditadura.

Este ano, o principal embuste sobre o tema veio em forma de Ordem do Dia assinada pelo general Braga Netto, ainda como ministro da Defesa. O texto contém um amontoado de afirmações sem base na realidade.

A começar pelo primeiro parágrafo, em que o general diz que o golpe "refletiu os anseios e as aspirações da população da época". Não é verdade. Entrevistas realizadas na cidade de São Paulo pelo instituto de pesquisa Ibope na semana anterior à derrubada do presidente civil registraram que quase 70% da população aprovavam o governo João Goulart, deposto pelos militares. Os detalhes do levantamento estão no arquivo da Unicamp.

Ignorar esse fato, que é amplamente conhecido pelos pesquisadores da História, não é tratar do assunto com "isenção e honestidade", como preconiza o texto de Braga Netto.

A Ordem do Dia prossegue com a afirmação de que a ditadura proporcionou "adoção do modelo republicano, que consolidou a nacionalidade brasileira". O general deveria explicar como um regime que mata e tortura seus oponentes pode contribuir para um modelo republicano.

Alguns exemplos de republicanismo nos relatos feitos à Comissão Nacional da Verdade por brasileiros que caíram nas garras da ditadura:

- Dirce Machado da Silva, agricultora do Norte de Goiás filiada ao Partido Comunista Brasileiro, conta o que os militares fizeram com seu marido para obrigá-la a delatar seus companheiros:

"Quebraram o nariz do Ribeiro com soco, arrastaram pelos pés e penduraram em uma árvore de cabeça para baixo, o sangue pelo nariz escorrendo. Se eu não falasse o que eles queriam ouvir, eles iriam matar o Ribeiro enforcado".

- Izabel Fávero, professora e militante da organização Vanguarda Armadas Revolucionária (VAR), conta que foi torturada em casa, na cidade de Nova Aurora, no Paraná, junto com seu marido:

"Batiam na gente com toalhas molhadas, tinha um alicate, beliscavam a gente no corpo, e meu marido, eles levaram, jogaram ele no córrego que tinha ao lado de casa, deram choques elétricos, dentro do córrego. Ele ficou com traumas o resto da vida, ele teve problemas urinários, ele teve que tratar a vida toda".

- Robeni Baptista da Costa, que era estudante secundarista e militante da União Nacional dos Estudantes :

"Eu fui para a cadeira do dragão (aparelho de tortura) em que os caras jogaram água e me deram um choque na vagina, no seio, o pior foi na orelha, porque a impressão que dá é que jogaram o cérebro da gente no liquidificador, sabe?".

Não há lei republicana que justifique tratamento desse tipo e muito menos a morte de vários adversários políticos.

Depoimentos como esses desmentem também o trecho do texto segundo o qual "nos anos seguintes ao dia 31 de março de 1964, a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz no País".

Os relatos servem ainda para rebater o tuite de outro general da reserva, o vice-presidente Hamilton Mourão, para quem em 1964 "a nação salvou a si mesma". Estranha forma de salvação essa, que lança mão de tortura e mortes dos que discordam do regime.

Para completar o dia de fake news que autoridades ligadas ao governo protagonizaram ontem, não poderia faltar Jair Bolsonaro, especialista em verdades imaginárias. Entre outras bobagens, o presidente disse que sem a ditadura o Brasil seria "uma republiqueta". Mentira, claro.

Mas para Bolsonaro, que inventa narrativas todos os dias, uma mentira a mais ou a menos não faz a menor diferença.