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Chico Alves

REPORTAGEM

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Domínio de evangélicos na política piora racismo religioso, diz babalorixá

Adailton Moreira, babalorixá do Rio de Janeiro - Divulgação
Adailton Moreira, babalorixá do Rio de Janeiro Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

05/09/2022 00h24

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Diz a Constituição que o Brasil é um Estado laico — mas não parece. Em troca de apoio político, o presidente Jair Bolsonaro é cada vez mais influenciado pelas demandas de líderes evangélicos, setores do governo são dominados por pastores neopentecostais e tanto o chefe do Executivo quanto a primeira-dama adotam a retórica dessa corrente religiosa. Na sexta-feira, em uma feira agropecuária, no Rio Grande do Sul, Bolsonaro disse que quer manter a supremacia cristã no país.

Babalorixá do tradicional terreiro de candomblé Ilê Omijuarô, localizado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Adailton Moreira Costa, 57 anos, diz que essa hegemonia fere o Estado Democrático de Direito. "Quando essas religiões aparelham o Estado e a sua máquina a gente sabe bem onde vai desembocar", disse ele à coluna. O babalorixá se refere a ataques à liberdade religiosa e ao racismo religioso.

Além de babalorixá, Costa é mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ele reclama da falta de políticas públicas para os adeptos das religiões afrobrasileiras e a punição para os ataques feitos contra terreiros, por homens que se dizem evangélicos.

Entre outras críticas, ele rebate as falas da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que volta e meia associa candomblé e umbanda a rituais demoníacos. "O demônio não é um problema nosso, o demônio é uma grande mola que impulsiona o discurso e a narrativa deles, no que se refere a justificar as suas práticas", explica Adailton.

UOL - O presidente Jair Bolsonaro disse em uma feira agropecuária no Rio Grande do Sul que o Brasil é um país formado majoritariamente por cristãos e que não admitirá "retrocesso" nessa área, porque "temos o povo e Deus ao nosso lado". O que acha disso?

Babalorixá Adailton Moreira Costa - Para nós, é muito complicado quando religião e governo estão de mãos dadas para manter a supremacia de algum segmento, aparelhando o Estado. Isso fere o conceito de Estado Democrático de Direito.

Quando essas religiões aparelham o Estado e a sua máquina a gente sabe bem onde vai desembocar: violações da Constituição Federal, que garante a liberdade religiosa. O conceito de Estado laico é importante para que não haja esse aparelhamento.

Isso não quer dizer que o Estado não deve estar atento às questões sociais de pessoas pertencentes a segmentos religiosos.

Esse grau de fundamentalismo e de proselitismo evangélico neopentecostal nos afeta imensamente por conta do racismo religioso.

De que forma os adeptos das religiões de matriz africana sentem as consequências do racismo religioso?

A gente vai percebendo os estereótipos, a invisibilização, a falta de políticas públicas efetivas para as religiões de matriz africanas. Nós somos uma religião de acolhimento, sem olhar a orientação sexual, a raça, a classe social das pessoas. Por isso somos estigmatizados, já que acolhemos o que as tradições racistas e preconceituosas não querem ver na sociedade com direitos reconhecidos.

Não somos religião salvífica. Não dizemos que para encontrar o mundo dos céus, o mundo dos deuses, você tem que fazer parte dessa visão neoliberal capitalista e mercadológica. Nós não temos essa relação com o mercado da fé.

Ao comentar um vídeo em que Lula aparece em um ritual de terreiro, a primeira-dama diz que ele entregou a alma para vencer a eleição. Disse também que o Palácio do Planalto já foi ocupado por demônios. O que acha dessas declarações?

Para nós, ela foi extremamente clara no que se refere a essa posição racista e preconceituosa. Toda hora eu digo que o demônio não é um problema nosso, o demônio é uma grande mola que impulsiona o discurso e a narrativa deles, no que se refere a justificar as suas práticas. O demônio não pertence a nós, não é uma questão nossa.

Eu acredito que o racismo religioso contra religião de matriz africana é motivado por ser uma tradição negra. Tudo que for inferiorizante eles jogam em cima de nós. "Seu cabelo é ruim, sua tradição é rui, sua cultura é ruim".

Eles só nos veem como pessoas que dançam em círculos e que sacrificam animais, o que não é verdade. Nós temos nossa cosmologia, nossa cosmogonia, nossa filosofia, nossas ciências, nossas tecnologias. A história e o desenvolvimento civilizacional deste país passam pelos povos negros ou oriundos de matriz africana. Negar isso é um grande retrocesso, é fundamentalismo, obscurantismo que as religiões neopentecostais vêm trazendo. Não entendo essa teologia que eles utilizam.

A parceria com o governo parece ter deixado integrantes de algumas correntes religiosas ainda mais à vontade para atacar o povo de terreiro.

Esse aparelhamento do Estado por parte deles cria um sentimento de impunidade, de que as leis não serão mais respeitadas. A Constituição Federal já está sendo jogada no lixo. Eles se sentem acima do bem e do mal. Isso é muito preocupante para nós.

Cada vez mais os casos de violência e de violação a terreiros e adeptos vêm crescendo, principalmente nesse desgoverno. Além disso, o machismo aumentou, o racismo aumentou, o feminicídio aumentou, o genocídio da população negra aumentou. Então, você tem diversas estruturas que vão engrossando esse caldo de violência e de violações que ficam impunes pela omissão do Estado brasileiro, que ele está aparelhando.

Tudo o que se refere a avanços políticos e democráticos das populações vulnerabilizadas está sendo atacado.

O número de ataques a terreiros por parte de pessoas que se dizem evangélicas aumentou bastante. Esses casos têm sido devidamente punidos?

Quando as pessoas vítimas de ataques aos terreiros vão fazer os boletins de ocorrência, policiais tentam associar a briga de vizinho, dizem que é assim mesmo. As religiões de matriz africana e seus adeptos nunca foram agredir ou depredar nenhum templo. Não há nenhuma reclamação nesse sentido.

Por que então essa impunidade? Nada é feito. A população negra de terreiro começa a não acreditar nas instituições, naqueles que deveriam dar segurança à população.

Esse gestor (Jair Bolsonaro) foi colocado lá para governar um país e a sua sociedade, mas sem abraçar somente os seus, somente aqueles de sua orientação religiosa.

O que temos feito é incentivar as denúncias, inclusive a organismos internacionais. Muitos tratados não são cumpridos pelo Estado brasileiro, mas o governo continua dizendo que sim. Isso é uma falácia. Em fake news eles são bons.

Como a eleição presidencial vai influir na situação dos adeptos das religiões afrobrasileiras?

Eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer. A tradição de matriz africana sempre teve essa marca da superação. Não precisaria ser na dor, como nós sempre estamos acostumados.

Estaremos aí lutando pelos nossos direitos. Independente de qual resultado da eleição, eu acredito que nós precisamos fazer um trabalho, não de conscientização política, porque nós já somos conscientes e por isso estamos resistindo até os dias de hoje. Mas é preciso um trabalho para saber de fato quem nos representa, de trabalhar a cultura da política.

Nós estamos preparando os nossos para isso. Pode não ser hoje, pode não ser amanhã, mas vai acontecer. Nós teremos os nossos representantes também, mas de uma forma que não seja baseado na ótica e na lógica que a gente percebe e sente hoje. Vai ser sob outra lógica no que se refere ao Estado Democrático de Direito, para que a gente possa viver a nossa liberdade plenamente.