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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Troca na Saúde atende ao chamado narcisista de Bolsonaro

10.mar.2021 - De máscara, presidente Jair Bolsonaro (sem partido) participa de cerimônia para assinatura da MP das Vacinas - Mateus Bonomi/AGIF/Estadão Conteúdo
10.mar.2021 - De máscara, presidente Jair Bolsonaro (sem partido) participa de cerimônia para assinatura da MP das Vacinas Imagem: Mateus Bonomi/AGIF/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

16/03/2021 14h58

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* Igor Tadeu Camilo Rocha

"Todos os ministérios são importantes, isso tem que ser muito bem discutido. A gente não pretende anunciar os nomes e, depois, lá na frente, trocá-los. É igual a um casamento, você pode namorar com muitas pessoas, mas ficar noivo e casar, só com uma (...). O critério para preencher (os ministérios) é técnico, não é festa. Não tô lá para fazer um governo como os anteriores, não vou jogar cargo pra cima e quem se jogar na frente pega."

(Jair Bolsonaro, 24/11/2018)

A afirmação acima foi feita por Jair Bolsonaro (sem partido), um mês após o segundo turno das eleições de 2018, sobre a composição de seu futuro ministério. À ocasião, participava da comemoração do aniversário da brigada da Infantaria de Paraquedistas, na Vila Militar, no Rio de Janeiro. Ali, respondia de maneira mais direta ao questionamento sobre ter ou não sido pressionado pela bancada evangélica para a escolha do ministro da Educação.

Cabe lembrar que, ali, havia sido divulgada a indicação de Ricardo Vélez Rodríguez para a pasta da Educação, mas circulava que Bolsonaro o havia escolhido em detrimento de Mozart Neves, diretor do Instituto Ayrton Senna. Este, crítico ao projeto Escola Sem Partido, teria sido preterido por contraindicação da bancada evangélica.

Voltando à citação com a qual se inicia este artigo, e motivado por mais uma troca no Ministério da Saúde durante a pandemia, pretendo problematizar aqui o tal critério "técnico" de Bolsonaro na escolha de seu gabinete ministerial.

A essa altura, parece óbvio dizer que as escolhas, aparentemente, obedecem a outros critérios que não os técnicos. Porém, pretendo aqui esboçar outra chave de leitura, uma que fuja da artificialidade da separação técnico x ideológico: Bolsonaro classifica como "técnico" aqueles quadros alinhados às suas formas de ver a política, mobilizando elementos que as legitimem nas disputas de narrativas.

Fundamental, de início, retomar que já nos primeiros meses de governo ficou bastante marcada nas análises a divisão entre alas "técnica" e "ideológica". Retomo aqui algumas linhas gerais do argumento que já discuti neste espaço em relação à artificialidade dessa divisão.

Primeiramente, ela é antipolítica por natureza porque remete ao pressuposto de haver alguma racionalidade superior a todas as formas de se pensar e fazer política, que é irredutível, incontornável e "não ideológica".

Em segundo lugar, ao identificar as ideologias como algo que obscurece o uso da razão no trato com a realidade, sempre se chega ao adversário político: o "ideológico" ou "político", equiparados ao "irracional", estão sempre do "outro lado". Não é fortuito que Bolsonaro complemente a fala de que suas escolhas serão técnicas com a afirmação de que não fará como "os governos anteriores". Esse sempre foi um dos elementos de sua tópica do "mudar tudo que está aí".

No debate político atual, a atribuição de "ideológico" ou "técnico" tem uma carga valorativa clara. Ideológico seria algo ruim, irracional, enquanto o técnico seria algo positivo, mais adequado e razoável. E há uma dimensão de alteridade e de disputa de narrativas ao se fazer tal classificação: é preciso se afirmar como técnico ou mais técnico que os outros, que são "ideológicos", para se legitimar escolhas.

Bolsonaro demonstra uma forma muito clara de agir nesse sentido: busca um quadro técnico que legitime publicamente seus dogmatismos nas mais diversas áreas e, juntamente a isso, busca nesse mesmo quadro uma fidelidade integral e um vínculo mais coeso com sua base política. A quase indicação de Ludhmila Hajjar, cardiologista do Incor e dos hospitais Star, da Rede D'Or, à pasta da Saúde em lugar de um desgastado Eduardo Pazuello, e alguns acontecimentos em torno disso, reforçam essa impressão sobre a técnica de governar do atual presidente.

Como relatado pela Folha, os posicionamentos de Hajjar vão na contramão do adotado pelo governo sobre políticas de enfrentamento da covid-19, sobretudo quanto às medidas de isolamento social adotadas por prefeituras e governos estaduais. Além disso, Hajjar enfrentou reações hostis de apoiadores de Bolsonaro, como ressaltou em entrevistas na última segunda (15), que envolviam desde campanhas virtuais de difamação até tentativas de invasão ao hotel em que estava, passando mesmo por ameaças de morte motivadas por sua não adesão ao negacionismo adotado pelo governo federal.

O que causou mais espanto, entretanto, foi a informação divulgada pelo portal Poder360 a respeito de reuniões, realizadas em 14 e 15 de março, entre Hajjar e Bolsonaro. "Você não vai fazer lockdown no Nordeste para me foder e eu depois perder a eleição, né?", teria dito o presidente à médica indicada à pasta. A cena, que poderia ter saído de alguma ficção que tivesse um político caricato e bufão como protagonista, é narrada em detalhes na matéria.

Um detalhe que chama a atenção na cena descrita pelo Poder360 é a presença do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que, juntamente com o então ministro Pazuello e o presidente, conduziu uma sabatina com a cardiologista. Mesmo sem saber do conteúdo da sabatina, a presença do deputado e filho de Jair Bolsonaro, em si, nos diz muito sobre a tal técnica do bolsonarismo à qual me referi.

Em que pese a relevância óbvia de Pazuello, que a despeito da sua (in)competência na condução da pasta era quem Hajjar iria substituir, qual seria a importância de Eduardo Bolsonaro para sabatinar uma indicada a ministra da Saúde, que em razão da pandemia é a mais visada e importante, nesse momento, no Brasil?

Desconheço se o deputado possui algum conhecimento técnico de temas relevantes em políticas de saúde, e, conforme consta da reportagem, não parece ter havido questionamentos do deputado à indicada nesse sentido. Porém, dado o relato, é possível pensar numa dupla importância do deputado e filho do presidente nesse tipo de escolha. Uma que remete à forma como Jair Bolsonaro parece entender a política, e outra quanto a suas balizas ideológicas.

Quanto à prática política do presidente e como ele entende a política, tudo remete a seu marcado particularismo. Bolsonaro deixa constantemente a entender que sua atuação na vida pública é uma extensão de suas relações familiares e com suas redes de sociabilidade mais próximas. Jair Bolsonaro busca ser o centro de uma rede de parentes, agregados e aliados submissos a ele, que o validam o tempo todo e constantemente fazem questão de reafirmar sua condição.

O especial "Anatomia da rachadinha", publicado pelo UOL, ilustra, didaticamente, o trânsito de parentes e dos mesmos funcionários no gabinete de Bolsonaro, enquanto deputado, e de seus filhos nos seus respectivos cargos políticos. Ainda que precise de devidas investigações para comprovar ou não a corrupção, já serve como evidência do modo pelo qual o atual presidente compreende a política: como um lugar para ocupar espaço com os seus.

A implicação disso na técnica de governar de Bolsonaro é a intensa busca de quadros que mostrem fidelidade e reafirmem as convicções do líder soberano, como numa extensão de sua vida particular que é a política, segundo sua impressão. Para ilustrar isso, remeto a outra análise publicada neste blog, esta sobre a fatídica reunião ministerial de 22 de abril, tornada pública por decisão do STF. A análise, feita por Rafael Burgos, ressalta os aspectos narcísicos e paranoicos do presidente Bolsonaro no trato com seus ministros, depreendida das falas da reunião.

Num outro artigo do mesmo autor, focado no ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, ele salienta esses mesmos aspectos, mostrando que a necessidade de demonstrações cada vez mais eloquentes de fidelidade e de adesão integral ao bolsonarismo, entre os ministros, se convertem em capital político.

Conforme revela o Poder360, também sabemos que Pazuello insistiu, na reunião junto a Bolsonaro e a médica Hajjar, em afirmar a narrativa de que os governos estaduais estariam exagerando sobre a trágica lotação de UTIs por casos de covid-19.

Sim, mais uma demonstração de fidelidade, reafirmada em troca de algum capital político num jogo de narrativas centralizadas em Bolsonaro. Algo bizarramente similar às cerimônias de beija-mãos das cortes com os monarcas absolutistas.

A indicada ao ministério, ao que tudo indica, parecia ser convidada a entrar num jogo de agrados e provas de fidelidade a Jair Bolsonaro. Uma fidelidade ao mesmo tempo pessoal, político-ideológica e de atuação na disputa política.

Em segundo, e por fim, vale refletir sobre a pergunta de Eduardo Bolsonaro a Ludhmila Hajjar sobre sua posição sobre aborto e armas, também destacada na matéria. Ali, são postos aspectos ideológicos do bolsonarismo no centro das racionalidades que regem esse tipo de escolha técnica.

Pensando somente do ponto de vista pragmático, talvez fosse irrelevante a avaliação de uma ministra da Saúde sobre política de armas - segundo a matéria, Hajjar ressaltou que isso seria competência da pasta de Segurança Pública, na sabatina -, mas ali fica claro que esse é um ponto fundamental para se medir sua fidelidade a um governo tão personalista e centralista.

A escolha de Marcelo Queiroga para a pasta da Saúde, por outro lado, parece ser a síntese do personalismo e do que discutimos: ele é amigo da família da esposa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e já se manifestou publicamente de forma elogiosa ao presidente; também disse que o lockdown "não pode ser política de governo" e defendeu a autonomia médica na prescrição do suposto tratamento precoce.

O perfil do "homem de confiança" de um presidente que vê a política a partir do seu umbigo, mas que tem a capacidade e legitimidade para cobrir de verniz técnico dogmas do bolsonarismo, se desenhou aí.

Erra, portanto, quem vê irracionalidade nos arroubos de Bolsonaro em reunião com a médica indicada. Quando ameaça "Você não vai fazer lockdown no Nordeste para me foder (...)", o presidente está seguindo precisamente a sua forma de ver a política: uma forma que, racionalmente, atende aos seus interesses pessoais, e que se expressa de maneira narcisista e autoritária, para o mal do país.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais