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Dilma: "Impeachment aconteceu porque travamos agenda neoliberal"

Dilma Rousseff em live das centrais sindicais no dia 1º de maio - Reprodução/TVT
Dilma Rousseff em live das centrais sindicais no dia 1º de maio Imagem: Reprodução/TVT

Colunista do UOL

04/05/2021 17h55

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* Cesar Calejon

Conforme demonstrado em artigo prévio publicado nessa coluna, a prática do lawfare (guerras jurídicas), de acordo com a definição dos juristas Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, autores do livro Lawfare: uma introdução (Contracorrente), é compreendida como "o uso estratégico do direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo".

O inimigo, nesse caso, podem ser empresas, estados, figuras públicas, líderes políticos (de esquerda, centro ou de direita) ou qualquer pessoa que eventualmente se atreva a contrariar os interesses dos atores que empreendem a guerra jurídica em certa ocasião e de dois grupos fundamentais para a condução deste tipo de iniciativa: o Judiciário e grupos midiáticos.

Esta semana, a coluna conversou com duas figuras históricas que, apesar de serem suscetíveis a erros e críticas como qualquer outro indivíduo, ousaram contrariar os paradigmas vigentes nos seus respectivos contextos sociopolíticos domésticos: José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, político português que foi secretário-geral do Partido Socialista (2004-11) e primeiro-ministro de Portugal (2005-11), e Dilma Rousseff, primeira presidenta do Brasil eleita e reeleita democraticamente (2010 e 2014).

Apesar de terem enfrentado casos específicos com as suas próprias idiossincrasias, Dilma e Sócrates sentiram de forma muito enfática o peso do arbítrio e da deletéria combinação que o conluio jurídico-midiático orquestrado pelas guerras jurídicas acarreta aos seus alvos, invariavelmente.

Em setembro de 2014, Sócrates foi preso em um espetáculo midiático no Aeroporto de Lisboa. Apesar de estar voltando para Portugal (a partir da França), ele foi detido "preventivamente" sob o argumento de que poderia fugir do país. O político acabou preso em frente às câmeras de televisão sem que nenhuma denúncia formal houvesse sido sequer apresentada até aquela ocasião.

Ainda assim, investigado por fraude fiscal, lavagem de dinheiro e corrupção, Sócrates foi detido e ficou mais de 11 meses preso, quando começou a redigir parte do livro "Só Agora Começou" (Contracorrente), que conta essa experiência e foi lançado no mês passado no Brasil. Recentemente, o político foi absolvido de todas as acusações de corrupção considerando a fragilidade e a flagrante violação do processo jurídico que o condenou, sem quaisquer provas materiais, via imprensa.

Nesse caso, a ordem de prisão foi expedida por Carlos Alexandre, do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, juiz responsável pela chamada Operação Marquês, a Lava Jato lusitana (dadas as devidas peculiaridades, conforme mencionado). Conhecido por sua estreita relação com o Ministério Público local, o magistrado ganhou a atenção da mídia e foi rotulado como o "grande combatente da corrupção". Soa familiar?

"O objetivo claro da Operação Marquês era aniquilar a minha imagem pública e me remover da política institucional portuguesa a qualquer custo", afirma Sócrates, que, apesar de identificar diversas similaridades entre a Lava Jato e a sua irmã portuguesa, também salienta pontos divergentes: no caso da operação brasileira, por exemplo, houve o comprovado elemento da ingerência estadunidense em colaboração com o ex-ministro bolsonarista, Sérgio Moro, e membros do Ministério Público Federal, liderados por Deltan Dallagnol.

Esse é o aspecto que agrava (ainda mais) a condição da Operação Lava Jato. No caso português, ao que tudo indica, elites internas disputaram o poder por meio da guerra jurídica. No Brasil, essas elites foram cooptadas por forças internacionais para destruir a economia brasileira (principalmente as empreiteiras e empresas da construção naval que competiam no mercado global) e manter os rumos sociopolíticos do país a serviço do projeto neoliberal moderno, que foi sucessivamente rejeitado nas urnas durante as quatro primeiras eleições presidenciais brasileiras que foram realizadas no século XXI.

"O golpe (de 2016) foi dado por razões muito concretas, porque a gente não deixaria passar a lei de Teto de Gastos, que constitucionalizou a austeridade, a retirada do povo do orçamento e da cidadania do voto. (...) O Teto dos Gastos é a garantia de que qualquer grupo político que ascenda ao poder no Brasil estará automaticamente submisso ao projeto neoliberal. Jamais deixaríamos passar medidas como a independência do Banco Central, o esquartejamento planejado da Petrobras, a reforma trabalhista que criou condições precárias de trabalho, trabalho intermitente etc. Ou seja, o golpe aconteceu porque nós travamos a agenda neoliberal", afirma Dilma.

Essa agenda é internacional e vem sendo avançada por um projeto geopolítico global que pretende manter o Brasil como produtor e exportador de produtos primários, a serviço do capital financeiro e dos interesses das elites empresariais e midiáticas nacionais. Por exemplo, segundo dados do GISMAPS, entre os anos de 2004 e 2015, dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 33 não produziram cabeças de gado. Esses poucos locais são cidades litorâneas, pantanosas ou asfaltadas. "O agro é pop" e está nos principais canais da televisão aberta brasileira, enquanto os índices de desemprego, violência, fome e todo o tipo de erosão social avançam em escala geométrica internamente.

Não por acaso, algumas dessas medidas, que foram introduzidas pela administração Temer, foram severamente aprofundadas no governo Bolsonaro, que agora, na iminência das complicações futuras que serão certamente produzidas pela CPI da Covid e pelo fantasma do impeachment ou da derrota em 2022, se utiliza de alguns dos seus membros mais reacionários para aplaudir a destituição de cortes constitucionais em outros países da América Latina, como no caso de El Salvador.

"O (Barack) Obama me prometeu (em 2013) que ele levantaria o que tinha acontecido para evitar processos similares de espionagem no futuro e que ele me responderia direitinho uma semana depois. Após uma semana, ele me ligou e disse que não conseguiria fazer isso. Passa-se um tempo, talvez um mês ou dois, acontece uma reunião da Assembleia Geral da ONU, quando o Sr. (Bill) Clinton solicitou um encontro paralelo conosco e me informou, extraoficialmente, que eles não poderiam responder as minhas duas questões, que eram sobre o que havia sido espionado e que eles se retratassem publicamente com um pedido de desculpa, porque eles não sabiam exatamente o conteúdo que o Edward (Snowden) possuía naquela época. O pedido público de desculpa veio em outro contexto, quando eles abriram uma investigação e lamentaram o ocorrido. Mas, sobre todas as informações que foram grampeadas, eles disseram que não poderiam informar precisamente, porque, segundo o próprio ex-presidente Clinton, eles tinham perdido o controle por conta de terem terceirizado parte dos serviços de inteligência da NSA para o setor privado", relembra Dilma, que escreveu o prefácio do livro apresentado por José Sócrates.

Um ano depois, teve início no Brasil o maior processo de lawfare da história do país, a Operação Lava Jato. Diversos líderes progressistas da América Latina enfrentaram processos similares ao longo dos últimos anos: Zelaya, em Honduras, Lugo, no Paraguai, Evo, na Bolívia, Cristina, na Argentina, Corrêa, no Equador, entre outros.

Fundamentalmente, a diferença entre as operações Marquês e Lava Jato foi a interferência de instituições estadunidenses, uma vez que, na Europa, é muito mais difícil cooptar as elites internas para avançar interesses estrangeiros do que no Brasil.

O resto é história que, infelizmente, tende a se repetir a menos que a população brasileira consiga se defender contra as guerras jurídicas que são praticadas em diferentes regiões e dimensões da geopolítica global. Somente assim poderemos dizer que o jogo genuinamente começou para o projeto de desenvolvimento nacional do Brasil.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).