Topo

Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ocupar a esfera pública, a saída para destronar o golpismo bolsonarista

29.jul.2021 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante sua live semanal - Reprodução/YouTube
29.jul.2021 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante sua live semanal Imagem: Reprodução/YouTube

Colunista do UOL

31/07/2021 16h50

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

* Igor Tadeu Camilo Rocha

Em junho de 2021, em entrevista, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Luís Roberto Barroso comentou sobre questionamentos infundados feitos pelo atual presidente a respeito das eleições. Disse, a meu ver acertadamente, que esse discurso "faz parte da retórica de certos segmentos políticos" sob a lógica do "se eu perder houve fraude".

Desde que Aécio Neves (PSDB) perdeu o pleito de 2014 e questionou, sem qualquer indício de fraudes, o resultado das eleições, parece que cruzamos o Rubicão e que a partir dali a lógica do "se eu perder houve fraude" se tornaria regra. Abriram-se portas para se instalar no debate político brasileiro uma das práticas mais corrosivas às democracias liberais que é deslegitimar a própria escolha de representantes pelo povo.

É fato de que acusação de fraude nas eleições não passa, ela própria, de uma fraude, exceto quando se apresentam evidências minimamente plausíveis de que elas ocorreram. Se não houver nada que sustente a suspeita, a acusação em si é um grande problema e, quando ela se converte em procedimento amplamente difundido e de grande repercussão, todos, cidadãos e instituições, saem prejudicados.

Não é por acaso que tentativas de deslegitimar eleições, enquanto prática, une as extremas direitas pelo mundo. Isso foi feito por Donald Trump, nos Estados Unidos, no pleito de 2020. Mais recentemente, foi a vez de Keiko Fujimori, no Peru, fazer o mesmo. Bolsonaro vai além deles, questionando até mesmo o resultado das eleições que venceu. No caso do presidente brasileiro, vem sendo recorrentemente levantada uma pseudodiscussão sobre o processo eleitoral tendo como base a segurança de urnas eletrônicas, adotadas no Brasil desde os anos 1990.

No bolsonarismo, o caos social e institucional que é próprio da irrupção dos laços de confiança entre cidadãos e instituições não é uma contingência de acontecimentos, nem mesmo resultado de problemas que volta e meia acontecem. É método. Assim, tanto faz se o voto for eletrônico, impresso, ou qualquer outro que seja. O importante é usar a deslegitimação do voto como mecanismo para se passar e reforçar a imagem de que Bolsonaro (e, por extensão, seus apoiadores) é sabotado pelo sistema.

É interessante, nessa retórica, a falta de necessidade de provas. Na live da última quinta (29), por exemplo, palco das mais recentes investidas conspiratórias contra as urnas, Bolsonaro voltou a investir em paranoias antipetistas, falando em Venezuela e associando o pré-candidato Lula a um projeto totalitário que levaria o Brasil à pobreza. No caso, não se trata de um argumento secundário: primeiro, faz-se o apelo identitário, direcionado às subjetividades de seus grupos de apoiadores, que marca um objetivo político: impedir o "mal" de voltar ao poder. E, para tal, tudo seria válido, não importa o grau de fantasia dos "indícios de fraude" supostamente mostrados pelo presidente.

Juntamente a alguns outros elementos, por essa chave de leitura, é possível compreender o porquê de pouco adiantar apresentar provas sobre a segurança das urnas eletrônicas ou mesmo de se exigir de Bolsonaro apresentação de evidências sobre tal fraude, já que a dúvida e a obscuridade em torno das eleições são fins em si mesmas.

Antes, é importante voltar à entrevista de Barroso, na parte em que disse que esse e outros problemas que tomam o Brasil de assalto sob o bolsonarismo devem ser enfrentados com um "choque de Iluminismo". Nas suas palavras: "Acredito que a defesa do voto impresso decorre do desconhecimento sobre como o sistema funciona e em razão das campanhas de desinformação. Acho que esses fatores também são determinantes para o movimento antivacina (...). E? por essas e outras que gosto de dizer que o país precisa de um choque de Iluminismo. Iluminismo significa razão, ciência, humanismo e progresso."

Chamo atenção para a relação feita pelo ministro entre as campanhas pelo voto impresso ou contra a urna eletrônica e movimentos que dizem para pessoas não se vacinarem. Ambos são resultado de um profundo anti-iluminismo, materializado em rejeições a valores modernos.

Bolsonaro não questiona as urnas a fim de um processo eleitoral mais transparente que respeite a soberania do voto popular, assim como divulgadores antivacina não se preocupam com a segurança dos imunizantes usados nas políticas de saúde pública. Nos dois casos, o caos aparece como método para, no primeiro caso, angariar poder e apoios em detrimento da saúde da democracia e, no segundo, para conquistar legitimidade e consciências em prejuízo da razão e da ciência enquanto parâmetros de tomada de decisões.

Tendo a ver essas negações e apegos a teorias conspiratórias, seja sobre votos, vacinas ou quaisquer objetos, como parte de processos históricos próprios de contextos em que alguns dos valores iluministas listados por Barroso, no trecho supracitado, perdem relevância na vida em sociedade. Em contextos como o nosso, razão, ciência, humanismo e progresso cedem lugar a fundamentalismos, particularismos e teorias conspiratórias que corroem os laços necessários para se viver em democracia, ainda que os nossos nunca tivessem sido, nem de longe, próximos daqueles que muitos iluministas sonharam.

Trazendo novamente a citação do ministro Barroso, dialogo aqui com um dos mais famosos teóricos da modernidade, que foi Montesquieu. Recorro ao capítulo 3 do livro III, intitulado Sobre princípios da democracia, do clássico Do Espírito das Leis (1748), a fim de refletir sobre o que pode vir a ser o "choque de Iluminismo" do qual o Brasil necessita para viver democraticamente.

Na obra, Montesquieu argumenta que cada forma de Estado, para funcionar bem, deve ter leis que sigam os princípios fundamentais de suas formas de governo. No caso das democracias, seu princípio fundamental seria a virtude. Esse termo é bastante polissêmico na obra do autor, podendo ser sintetizado, grosso modo, como o apego do cidadão ao império das leis e à coletividade do corpo dos cidadãos em detrimento de tudo que remeta a particularismos. A democracia, para ele, deve ter leis que estimulem virtudes como a frugalidade, igualdade entre cidadãos e o apego às leis - que são formuladas, executadas e aplicadas pelos próprios cidadãos, através de instituições criadas por e para eles.

Sem essa virtude, para Montesquieu, o que for de domínio dos cidadãos enquanto coletividade, ou seja, o que é público, passa a ser apropriado por sujeitos ou grupos que se veem acima das próprias leis. Quando se chega a esse ponto o Estado democrático se perde de vez, corrompendo-se e tornando-se uma outra coisa que não uma democracia, mas somente uma distorção, abrindo caminhos para governos corruptos e despóticos.

Mas o que isso tem a ver com a "crítica" de Bolsonaro às eleições ou com o "choque de Iluminismo" de que precisamos? Diria que tudo. Explico.

No caso do método bolsonarista de governar pelo caos e pelo conflito, especificamente fomentando dúvidas baseadas em teorias conspiratórias sobre as eleições, vemos esse processo de deterioração da democracia, conforme sistematizado por Montesquieu, se materializar. É um caso bem visível de um processo no qual valores compartilhados por um corpo de cidadãos, e institucionalizados por eles na Constituição, instâncias de representação e instituições, são postos de lado em razão de se afirmar uma pretensa soberania da vontade particular, do bolsonarismo, e de seu sentimento de conformar a sociedade e a realidade à sua vontade.

A retórica repetida por Bolsonaro de que só aceitará os resultados das eleições de 2022 se elas acontecerem da forma que ele quiser, e os sentimentos evocados por esse discurso em seus apoiadores, nada mais é do que a afirmação de sujeitos que não se entendem como submetidos às mesmas leis que os demais cidadãos, os quais entendem como inimigos. Bolsonaro e o bolsonarismo, assim, talvez servissem a Montesquieu como exemplos de fenômenos que surgem como produto do esvaziamento das virtudes que são princípios das democracias.

Na live do dia 29, sintetizada brilhantemente pelo comentarista da GloboNews Octavio Guedes como algo que misturava o infame Plano Cohen, de 1937, com o meme da grávida de Taubaté, Bolsonaro, além de evocar paranoias como o mito do "perigo vermelho", fez ataques às instituições (sobretudo o STF), misturados com um material indescritivelmente tosco sobre supostas fraudes na eleição. O fato de isso ter relevância pública e ainda não ter tido reação contrária veemente da sociedade e instituições revela nossa necessidade do tal "choque de Iluminismo".

Tzvetan Todorov, em seu ensaio Espírito das Luzes (2006), definia o Iluminismo não como um movimento ou escola filosófica que tenha trazido ou formulado grandes novidades, mas como um processo plural e difuso no qual muitas pessoas — dentre os quais os philosophes de várias partes da Europa, mas que foram acompanhados por pessoas de diversas origens e contextos sociais — se organizaram de maneira a ocupar a esfera pública e os espaços de poder. Somente assim, valores antigos como razão, humanismo, liberdade e igualdade se tornaram projetos políticos, que questionaram estruturas bem consolidadas nas sociedades de Antigo Regime.

Não sei se nesse ponto estou de acordo com o que foi dito pelo ministro Barroso, mas compreendo que o choque de Iluminismo que urge no Brasil tenha bastante a ver com a síntese sobre esse contexto feita por Todorov. Não é possível uma democracia sem valores como razão, igualdade, liberdade, humanismo e tolerância como centrais na vida em sociedade. E também não é possível que tais valores se tornem centrais sem que seus defensores ocupem os espaços públicos e exerçam força suficiente para que lives como aquela de Bolsonaro, junto com todo o seu enorme repertório de obscurantismo, sejam reduzidas ao ridículo do qual nunca mereciam ter saído.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais