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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Na gramática bolsonarista, 'Rachadinha' não quer dizer corrupção

Queiroz é tietado com apoiadores de Bolsonaro - Reprodução: Arthur Guimarães/TV Globo
Queiroz é tietado com apoiadores de Bolsonaro Imagem: Reprodução: Arthur Guimarães/TV Globo

Colunista do UOL

14/09/2021 12h24

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* Igor Tadeu Camilo Rocha

As inúmeras acusações de esquema de "rachadinha" — outro nome para o crime de peculato, fundamental frisar —, reforçadas por denúncias como as que vêm sendo publicadas pelo UOL e pelo Metrópoles, são substantivos indícios de que Jair Bolsonaro seja, sim, corrupto. Corrupto aqui definido como uso indevido do erário público e de posições na administração do Estado em benefício particular, sempre no atropelo da lei.

Não só Bolsonaro, mas sua família, agregados e pessoas próximas, a se confirmarem as denúncias, seriam corruptos nesse mesmo sentido. O atual presidente pensa o Estado, como já discuti nesse espaço à ocasião da sua escolha de um novo ministro da Saúde, segundo uma lógica em que ocupá-lo, disputá-lo e loteá-lo em benefício particular seria um fim em si mesmo. Bolsonaro pensa o Estado como extensão de sua casa.

A CPI da Covid, que começou investigando o gabinete paralelo e práticas negacionistas e anticientíficas no trato da covid-19, adentrou um escandaloso esquema de corrupção envolvendo o Ministério da Saúde, empresas e governistas do "centrão", dando à comissão contornos novos. A se confirmarem essas outras denúncias, podemos começar a conceber que a distância entre o negacionismo e o patrimonialismo não existe no bolsonarismo. Pelo contrário, se encontram nele, formando uma agenda política de aparelhamento e desmonte da própria máquina estatal.

Entendendo o bolsonarismo por essa via, podemos chegar à conclusão de que a corrupção seja um aspecto constitutivo deste grupo político. E assim, caberia uma pergunta óbvia: como foi possível a este mesmo governo se eleger sob forte discurso anticorrupção? Para respondê-la, é crucial ter em vista o real significado da palavra "corrupção" no vocabulário bolsonarista.

No sentido predominante ao bolsonarismo e com lastro no pensamento da direita brasileira, corrupção é uma categoria vaga, abstrata no nível quase religioso, e que constantemente serve como elemento de demonização do adversário; a segunda, complementar à primeira, é que o que se entende como corrupção seria o oposto daquilo que chamam de liberalismo, este segundo sua definição particular.

Para tentar clarear melhor esses dois pontos, revisitemos o "Caminho da Prosperidade", programa de governo apresentado por Bolsonaro nas eleições de 2018.

Na página 35 do documento, há o título "Sufocar a corrupção". Mas ele é somente um subtítulo do capítulo intitulado "Segurança Pública e Combate à Corrupção", que começa já na página 14. A linguagem punitivista perpassa os dois tópicos a ponto de quase se confundirem. Diria que o segundo se dilui no primeiro.

Na relativamente longa apresentação de dados (problemáticos) sobre segurança pública, armas e prisões são apresentadas como resolução de problemas. Posteriormente, o tópico específico sobre corrupção traz somente dois itens explicando quais seriam as medidas a serem adotadas no governo contra o problema. São eles: 1) "Transparência e Combate à Corrupção são metas inegociáveis", algo que em si nada diz, mas que é complementado por 2), que afirma "como pilar deste compromisso, iremos resgatar As Dez Medidas Contra a Corrupção, propostas pelo Ministério Público Federal e apoiadas por milhões de brasileiros."

A linguagem punitivista une os tópicos sobre uma corrupção generalizada e a respeito da segurança pública ("Brasil em guerra", usando seus termos). E se une de maneira mais clara ao definir o agente causador dos dois problemas: a esquerda. Ela aparece no texto como elo que une narcotráfico, políticas de desarmamento, corrupção em estados "governados pelo Foro de São Paulo" (do Nordeste, na sua maioria), a limitação de ações das autoridades policiais e ineficiência da máquina pública.

Não há, efetivamente, medidas concretas sobre como combater a corrupção, exceto uma evocação das "dez medidas" propostas pelo MPF, operação que se vale da imagem da Lava Jato como aquela operação que combateu a esquerda e o PT.

É nesse ponto que chegamos à primeira resposta, no caso, de a corrupção ser evocada por essa direita bolsonarista numa acepção semirreligiosa a fim de demonizar adversários, reduzindo-os a inimigos a serem eliminados. Não se trata de inovação do bolsonarismo, pois, no vocabulário político brasileiro, corrupção nessa acepção remonta ao udenismo ou às Marchas com Deus pela Família, só para ficar nesses exemplos.

Nessa acepção, corrupção é representada enquanto um mal ético-moral onipresente, que cerca o "cidadão de bem" cuja sensibilidade se quer atingir. O adversário político é colocado na posição de agente de um "pior dos mundos", no qual a honestidade e o patriotismo do "nós" são delimitados como contraponto a um "outro" enquanto "bandido", "comunista" etc.

Não é fortuito que o tema corrupção esteja diluído no da segurança pública, já que a construção de ambas, nessa retórica bolsonarista, se vale de chaves de leitura parecidas. Não é de hoje, por exemplo, a importância da linguagem do jornalismo "mundo cão" para a visão de mundo das direitas e do bolsonarismo. Assim, se atrela a corrupção à sensibilidade política do "cidadão de bem".

Cabe aqui menção ao lavajatismo, antipolítico na sua essência, e que por isso dialoga de maneira formidável com esse tipo de retórica. Combater a corrupção, nesse caso, é combater um inimigo e não importa os abusos jurídicos ou policiais que se cometa.

Complementar a isso, atrela-se o pânico moral como componente dessa forma semirreligiosa de entender a corrupção: doutrinação nas universidades e sexualização das crianças, que aparecem no título de educação como grandes marcas do inimigo (a esquerda) nesse campo, são bons exemplos.

Vemos o segundo ponto, da corrupção como oposto de liberalismo. Isso aparece já na página 5, no tópico "Liberdade e Fraternidade!". Nesse trecho, o programa adota como pressupostos que, "quebrando com o atual ciclo" de governos e, com isso, obtendo "o Brasil livre do crime, da corrupção e de ideologias perversas, haverá estabilidade, riqueza e oportunidades para todos tentarem buscar a felicidade da forma que acharem melhor." A isso, complementa que o programa do governo que seria eleito defende "liberdade para as pessoas, individualmente, poderem fazer suas escolhas afetivas, políticas, econômicas ou espirituais."

Também é dito na mesma parte que "qualquer forma de diferenciação entre os brasileiros não será admitida", além de uma constante reafirmação de que tais direitos seriam garantidos somente se alguns deveres fossem observados, como a obediência às leis brasileiras e à Constituição (ponto risível se pensarmos nas ameaças de Bolsonaro a ambas).

"A Liberdade é o caminho da prosperidade. Não permitiremos que o Brasil prossiga no caminho da servidão", aparece num trecho que talvez aluda ao influente livro de Friedrich Hayek, ícone do ultraliberalismo, publicado em 1944.

É a partir desses pressupostos que se desenvolve a ideia de corrupção como antítese de um liberalismo. Mas trata-se de um liberalismo que prescinde das formas políticas do mesmo liberalismo (a democracia liberal), aceitando perfeitamente uma sociedade e Estado autoritários, desde que disponha de livre mercado e que este sirva à manutenção e reforço de hierarquias sociais tradicionais.

Apontaria, ao menos, três bases nas quais essa construção da retórica anticorrupção bolsonarista se sustenta. A primeira é um completo esvaziamento do sentido de Estado como ente coletivo e promotor de progresso ou igualdade social. O "governo recuará, para que os cidadãos possam avançar", já que ele "confiará no cidadão, simplificando e quebrando a lógica que a esquerda nos impôs de desconfiar das pessoas corretas e trabalhadoras," diz.

Nesse sentido, parte-se para associar "corrupção" ao setor público, posto como limitador do indivíduo da livre iniciativa. Trata-se de um mesmo sentido de liberalismo que guia falas como as do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, quando disse que leis ambientais levariam "pessoas de bem", como garimpeiros ilegais e grileiros, para a ilegalidade.

Também podemos ver que, dentro desse universo ideológico, a própria política é reduzida, na medida em que é sobreposta a um tecnicismo neoliberal que vincula quaisquer outros projetos político-econômicos a aparelhamentos, distribuição de vantagens, "toma lá, dá cá" etc.

E então chegamos a uma segunda base, que é um atomismo quase absoluto, segundo o qual o indivíduo livre de amarras do Estado poderia realizar todos os seus objetivos. Embora haja título defendendo, por exemplo, renda mínima universal (fazendo questão de frisar que isso seria uma ideia liberal, e não de esquerda), é uma constante no programa insistir em valores de sucesso individual.

A própria ideia mencionada acima de se vetar qualquer diferenciação entre cidadãos brasileiros dialoga bem com essa concepção. Segundo o bolsonarismo, políticas para minorias, reparatórias ou promotoras de inclusão seriam também "corrupção" por tratarem indivíduos que são parte dessa "nação" de maneira diferente.

Por fim, esse liberalismo bolsonarista afirma uma necessidade de haver uma refundação da sociedade e do Estado brasileiros. Nesse "novo mundo", a corrupção, aqui concebida como um valor nacional que foi reforçado pelos governos anteriores, seria vencida pelo atual governo na medida em que ele destrói tudo o que havia antes e reconstrói o Brasil e o brasileiro à sua própria imagem.

O título "Liberalismo Econômico" (a partir da página 13) começa dizendo que "economias de mercado são historicamente o maior instrumento de geração de renda, emprego, prosperidade e inclusão social", mas que "o Brasil NUNCA adotou em sua História Republicana os princípios liberais". Pelo contrário, optou por ideias "obscuras, como o dirigismo, resultaram em inflação, recessão, desemprego e corrupção." E, claro, o principal exemplo dessas práticas que é apontado é o PT.

O programa de Bolsonaro se propõe a acabar com um Estado corrupto, deficitário, excessivamente burocrático e interventor, e assim finalmente implementar seu liberalismo. Com isso, haveria também uma profunda mudança social. "O Brasil passará por uma rápida transformação cultural, onde a impunidade, a corrupção, o crime, a 'vantagem', a esperteza, deixarão de ser aceitos como parte de nossa identidade nacional, POIS NÃO MAIS ENCONTRARÃO GUARIDA NO GOVERNO" (maiúsculas do original).

É importante entendermos que essa construção não é contraditória com as práticas do governo Bolsonaro. Há exceções claras ao esvaziamento e diminuição do Estado. Por exemplo, na educação, justiça e segurança pública, quanto mais presente for o Estado para banir a corrupção moral que teria sido imposta pela "doutrinação", criminalidade ou narcotráfico, melhor. Seria aceito qualquer tipo de ingerência ou autoritarismo nessa operação para o bem geral, nesse sentido.

Da mesma forma, não é contraditório querer implementar um liberalismo supostamente inédito no Brasil aliando-se ao centrão e a práticas patrimonialistas, uma vez que, partindo-se da concepção de que todo o Estado é corrupto, apropriar-se dele funciona como meio para implementar as reformas que visam a destruí-lo e refunda-lo segundo o desejo bolsonarista.

Nesse sentido, para concluir, essa leitura que concebe a corrupção como grande mal moral ou como antítese de uma certa ideia de liberalismo atua nas sensibilidades políticas conservadoras brasileiras de várias vertentes, desde os fãs de programas "pinga sangue" aos "farialimers" e simpatizantes que aceitariam um governo autoritário por reformas neoliberais. E isso é algo que o bolsonarismo não inventou, pois faz parte do imaginário político de direitas não democráticas brasileiras desde, pelo menos, meados do século XX e que permanecem presentes, servindo para que fenômenos como o bolsonarismo tenham adesão social.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais