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Relatório de Renan testará como nunca a resiliência da Constituição

Renan Calheiros durante sessão da CPI - Jefferson Ruddy/Agência Senado
Renan Calheiros durante sessão da CPI Imagem: Jefferson Ruddy/Agência Senado

Colunista do UOL

18/10/2021 16h18

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* Cesar Calejon

O relatório final da CPI da Covid, a ser apresentado na próxima semana, pode até não significar a derrocada final do governo Bolsonaro, mas traz duas dimensões fundamentais à vida sociopolítica do país, considerando, sobretudo, a corrida presidencial de 2022: as conclusões da Comissão oferecem, de forma empírica e embasada por provas irrefutáveis (áudios, vídeos, documentos etc.), uma (1) radiografia fiel do que foi o bolsonarismo até esse ponto, mais precisamente durante a pandemia, e (2) um teste de resiliência para a Constituição de 88.

Ao listar ao menos onze crimes que foram cometidos por Jair Bolsonaro desde o início da crise sanitária — causar epidemia, provocando mortes; infração de medidas sanitárias; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documento particular; genocídio de indígenas; prevaricação; charlatanismo; crimes contra a humanidade; crimes de responsabilidade e homicídio por omissão —, a CPI escancara o caráter assassino do bolsonarismo e dos seus principais membros e oferece uma sólida composição material que serve como guia jurídico para que sejam imputadas as devidas responsabilidades.

Além de Jair Bolsonaro, outras quarenta pessoas que participaram ativamente dessa arquitetura da destruição deverão ser indiciadas e esse fato manda um recado fortíssimo para todas as figuras públicas que pretendem utilizar o ódio, os elitismos histórico-culturais e as notícias falsas como plataformas para ascenderem ao poder. Com todos os crimes e criminosos devidamente apontados, o papel seguinte exercido pelo relatório final da CPI será o de testar a composição do regime democrático brasileiro.

Evidentemente, o bolsonarismo aparelhou as principais instituições da República no sentido de proteger o presidente e os seus principais artífices visando garantir que essas pessoas estejam acima da lei. Contudo, no nosso Estado de Direito, nenhum cidadão, sem exceções, está jamais acima da lei e esse é o parâmetro basilar da democracia brasileira. Caso haja qualquer ruptura nessa premissa, todo o edifício democrático desaba.

Eis o grande teste que o relatório da CPI impõe à vida parlamentar e social do Brasil nesse momento: com os devidos delitos comprovados, as figuras apontadas precisam responder pelos seus atos. A população brasileira, que com frequência presencia as partes mais empobrecidas do seu arranjo social serem presas por furtar comida no desespero de matar a fome dos filhos, simplesmente não pode ficar nas mãos de uma burocracia corrupta que blinda os seus, objetivando ganhos individuais.

Caso assim aconteça, a arquitetura institucional da constitucionalidade brasileira terá se mostrado inapta a defender os interesses, direitos e deveres da sua própria população, objetivo primário e elementar da sua própria formulação, e deverá ser repensada. Além disso, nesse cenário, as acusações contra o presidente e os principais membros do bolsonarismo devem ser reforçadas junto às (seis) denúncias que já foram feitas nas cortes internacionais, conforme mencionado por diversas vezes nessa coluna.

Ao que tudo indica, até a presente data, o Estado brasileiro não tem a intenção de responsabilizar as figuras apontadas pelo relatório final da CPI. Assim, o artigo 7, inciso primeiro, letra K, do Estatuto de Roma, que deu origem ao Tribunal Penal Internacional, prevê que "atos desumanos que possam afetar gravemente a saúde e a integridade física de outras pessoas" são passíveis de julgamento pelo Tribunal.

Conforme Ricardo Pinto Franco, jurista que tem o reconhecimento para advogar na jurisdição do TPI (List of Council), explicou para essa coluna, "após grandes pandemias, acontece toda uma gama de verificações e estatísticas, que podem ser usadas para facilmente comparar as medidas que foram adotadas por diferentes países e como essas ações afetaram as suas respectivas populações. Será evidente o número de vidas que poderiam ter sido salvas e isso servirá como parâmetro para o TPI, sem dúvida".

Diversos capítulos do meu novo livro, "Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente)", trazem avaliações epidemiológicas e econômicas que estabelecem tais comparações e evidenciam esses fatos, por exemplo.

Por fim, o relatório da CPI é o documento mais notório e contundente para reforçar a denúncia contra a máquina de morte do governo bolsonarista e, ainda que o documento não resulte no impeachment imediato de Bolsonaro, ele traz sérias implicações de todas as ordens para o bolsonarismo.

Atualmente, documentos, livros e estudos como os citados pelo jurista do TPI fazem Bolsonaro esquecer a postura de "machão da Internet" para chorar durante o banho, literalmente.

* Cesar Calejon é jornalista, com especialização em Relações Internacionais pela FGV e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela USP (EACH). É escritor, autor dos livros A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI (Kotter) e Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente).