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Com o Brasil na fossa, sobram privilégios para os fósseis

Favela na zona sul de São Paulo com esgoto a céu aberto - Van Campos/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Favela na zona sul de São Paulo com esgoto a céu aberto Imagem: Van Campos/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

12/11/2021 14h30Atualizada em 12/11/2021 14h30

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*Marcela Moraes

Metade da população brasileira não tem acesso a serviços de esgotamento sanitário. Apesar de ainda estarmos longe da universalização deste direito humano no Brasil, o saneamento tem orçamento público equivalente a 12% dos incentivos e subsídios concedidos aos combustíveis fósseis, os maiores causadores do aquecimento global. Esse número é um retrato das prioridades nacionais.

Os dados sobre saneamento básico no Brasil são alarmantes. De acordo com o Instituto Água e Saneamento (IAS), 43% dos brasileiros não têm acesso adequado à água e 52% não têm acesso à rede de esgoto. São 107 milhões de pessoas sem acesso a serviços de esgotamento sanitário.

Enquanto negligenciamos os investimentos necessários para o acesso a um direito fundamental para a saúde e o meio ambiente, aumentamos os subsídios destinados aos combustíveis fósseis, como o petróleo, o carvão mineral e o gás natural. Ao fazer esta escolha, o Brasil deixa de arrecadar o equivalente a quase 2% do PIB (o que corresponde a R$ 123,9 bilhões em 2020), como demonstra o relatório "Subsídios aos combustíveis fósseis no Brasil (2020): conhecer, avaliar, reformar", publicado esta semana pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O valor deste ano é substancialmente maior do que o de 2018, quando era de 1% do PIB, o que corresponde a R$ 85 bilhões.

Os investimentos públicos em saneamento básico estão muito aquém do necessário. Em 2019, foram R$ 15,7 bilhões. Para universalizar os serviços até 2033, conforme o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), seria preciso investir cerca de R$ 43 bilhões por ano desde 2019.

Pandemia, desigualdades e privatização

Durante a pandemia, a falta de saneamento básico foi um dos fatores mais preocupantes na disseminação do coronavírus. Grande parte da população, sem acesso à água, tinha dificuldade de seguir a recomendação mais básica de prevenção: lavar as mãos. Vimos isso se refletir na diferença dos índices de contaminação entre as periferias e regiões centrais das grandes cidades, e também entre as regiões mais pobres e mais ricas do Brasil.

Com a aprovação, em 2020, do Novo Marco Regulatório do setor, o governo Bolsonaro aposta na privatização. Segundo Léo Heller, relator especial da ONU para os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário no Brasil, o modelo leva à concentração da prestação de serviços em grandes grupos econômicos. O especialista afirma que a privatização nesta escala não tem respaldo em qualquer experiência internacional recente: "os países que fizeram, se arrependeram e estão voltando atrás", concluiu.

Sob a perspectiva dos direitos humanos, Heller chama a atenção para a importância de identificarmos quem são os 107 milhões de brasileiros excluídos do acesso adequado a água e esgoto: "é a população rural, a população que vive nos assentados informais das cidades de médio e grande porte, a população que vive em cidades menores, a população que está no Nordeste e no Norte, as comunidades tradicionais, os povos indígenas, quem tem menor renda e quem tem menor nível educacional", destacou.

Saneamento e mudanças climáticas

A crise hídrica é, hoje, um dos maiores problemas sociais e ambientais que o país enfrenta, problema este que será cada vez mais agravado pela falta de saneamento e pelas mudanças climáticas. Nos lugares em que os serviços de esgotamento sanitário não chegam, o tratamento da água não é realizado. De acordo com o Instituto Trata Brasil, somente em 2021 já foram despejadas mais de 1,6 milhão de piscinas olímpicas de esgoto na natureza.

Portanto, investir em saneamento é, também, avançar na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas e na segurança hídrica da população.

Por sua vez, os combustíveis fósseis são os maiores causadores do aquecimento global e a principal fonte emissora de GEE (Gases de Efeito Estufa) nas grandes cidades brasileiras. Neste momento, na COP 26, países do mundo inteiro discutem a necessidade de acabar com energias fósseis. Diante da gravidade das consequências que já estamos enfrentando por conta das mudanças climáticas, não faz sentido que o Brasil aumente subsídios para o petróleo.

Saneamento básico, como o nome diz, é a política mais básica de saúde pública. Nossa política para o setor, no entanto, é símbolo de uma sistemática reprodução das desigualdades. Se a metade do valor dos incentivos e subsídios concedidos em 2020 aos combustíveis fósseis fosse investida em saneamento anualmente, seria possível universalizar o acesso ao direito ainda nesta década. No entanto, no ritmo em que estamos, a universalização não acontecerá antes de 2050. Se são escolhas, poderiam ser diferentes.

*Marcela Moraes é pesquisadora, advogada, mestre em gestão de políticas públicas e diretora de estudos e pesquisas da Fundação Rede Brasil Sustentável.