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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Elogio de Lula a Ortega é afeto a um valor do passado

Colunista do UOL

20/12/2021 08h00

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[RESUMO] A fala de Lula atenuando o governo autoritário da Nicarágua é produto menos de uma ameaça autoritária da esquerda ou de equívocos racionais de análise. A relativização de ditaduras ocorre, sobretudo, por motivações afetivas e identitárias catalisadas por valores que tais países representam ou representaram, como o combate às desigualdades sociais ou o anti-imperialismo. Não cabe nessa leitura que revoluções que partiram desses valores não se congelam no tempo - o que vem depois disso não necessariamente tem compromissos com a emancipação humana. Pode, inclusive, romper com eles e negá-los, produzindo toda sorte de abusos.

Ortega - Oswaldo Rivas/Reuters - Oswaldo Rivas/Reuters
Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega
Imagem: Oswaldo Rivas/Reuters

Igor Tadeu Camilo Rocha

Muito se comentou sobre a fala do ex-presidente Lula feita em entrevista ao jornal El Pais, da Espanha, durante sua passagem pelo país ibérico. Não entrarei muito no conteúdo dela, pois o assunto foi amplamente discutido. Meu foco, primeiramente, é na sua parte da repercussão. Depois, enfatizo um problema que volta e meia vem à tona quando se discute democracias ou a falta dela noutros países, sobretudo da América Latina, e em como isso funciona no nosso debate político.

Sabemos, claro, das várias e justificáveis críticas à fala que minimiza o processo autoritário pelo qual passa a Nicarágua, mas quero aqui passar por algumas tentativas de defesa do ex-presidente, feitas por alguns apoiadores.

Vendo o clima em redes sociais, por exemplo, me deparei com defesas ao ex-presidente que no geral são baseadas em tu quoque - a falácia argumentativa baseada no "apelo à hipocrisia", na qual se aponta alguma incoerência entre crenças e/ou comportamentos e a fala de um interlocutor, sem, de fato, desconstruir seu argumento contrário. Por ex. "Lula defendeu Ortega, mas FHC homenageou e elogiou Alberto Fujimori em 1996"; "Lula atenuou o autoritarismo do presidente da Nicarágua, mas semana passada Bolsonaro ouviu sugestão do 'modelo Hitler' de educação e não houve a mesma comoção" etc.

Lideranças, grupos ou governos de extrema direita ou centro-direita terem elogiado ou homenageado responsáveis por rupturas democráticas e morticínios não justifica ou atenua que alguém de outro espectro político tenha feito o mesmo. Nem o campo político que responsáveis por crimes do tipo deve, do ponto de vista ético, servir de justificativa para esse tipo de ato. Espero que para a maioria dos leitores sequer seja necessário alongar nesse ponto.

Isso porque o artigo aqui é mais sobre um incômodo que tenho toda vez que democracias e autoritarismos de outros países ganham o debate público por algum motivo. Geralmente, incorre-se numa série de problemas que giram em torno do uso dos regimes políticos de outros países como uma espécie de fetiche. Aqui, fetiche sendo definido como a adoração (ou repugnância, no campo oposto) a determinados objetos com intencionalidade de estimulação própria.

Aplicado na política, o fetiche nessa acepção aparece nas avaliações de democracias e não democracias de outros países apenas como forma de defender ou (re)afirmar as próprias convicções políticas e, por conseguinte, detratar as de adversários/inimigos. Esse aspecto compromete uma análise crítica dos casos, pois comumente desconsidera a história ou a situação objetiva deste ou daquele país. Ao invés disso, recorre-se a abstrações e noções apriorísticas para encaixar ou não casos concretos, além dos próprios afetos políticos de quem analisa. Esse vício pode ser visto em partidos, lideranças e analistas de todos os espectros políticos, democráticos ou não.

Sublinho aqui que esse texto se refere a comportamentos e problemas referentes a esquerdas e direitas democráticas, pois assumo de antemão que nesses espectros predomina alguma vontade de esclarecimento do debate político, ao contrário das extremas direitas, para quem contaminar o debate com confusões e fantasias é algo positivo.

É natural que análises partam de ou busquem por referências para serem conduzidas. E discutir sobre democracias e seu funcionamento parte de uma referência bem objetiva, que está nas democracias liberais e no princípio de Estado de Direito. Assim, recorre-se a tradições e modelos políticos construídos e consolidados nos últimos dois séculos e meio, pelo menos.

Nesse caso, a referência nas democracias liberais evoca um conjunto de características. Por exemplo, que democracias precisam do voto universal dos cidadãos, além de uma alternância do poder por meio dele. Somente assim o exercício do poder poderia ser legítimo. Além disso, é necessário existir cidadãos enquanto categoria de indivíduos, dotados de direitos assegurados na prática pelas instituições, constituições e pela própria forma de sociedade.

Nas democracias, o poder, para ser legítimo, deve ser moderado. Para tanto, são necessárias instituições, por meio das quais existirão mediações, protocolos e liturgias para que o Estado possa agir de maneira legítima em relação a qualquer cidadão. Além disso, nossa ideia de democracia se sustenta sobre diversos princípios, como liberdade de pensamento, de associação, de imprensa, de representação e participação política que devem ser cultivados, mas que também precisam ser objetivamente realizados e observados nas instituições e sociedade civil. Assim, no exercício do poder, moderado e mediado, seria evitando abusos e o arbítrio de indivíduos, grupos, instituições particulares e o próprio Estado perante o todo do corpo de cidadãos.

Tais linhas gerais do que seriam democracias parecem quase fatos naturais a nós quando os mencionamos. Porém, não é preciso ir muito longe para dizer que eles não constituem realidades universais. Pelo contrário, o surgimento e consolidação de todos esses valores, instituições e normas sociais democráticas em qualquer lugar é bem complexo. Além de serem produtos de décadas ou séculos de conflitos, discussões, disputas e toda sorte de enfrentamento - alguns deles sangrentos, não raramente, mesmo depois de avanços substantivos em determinados contextos, essas democracias enfrentam rupturas e retrocessos em seus caminhos.

Democracias nunca foram processos lineares, nem se implementam como uma espécie de caminho natural universal em todas as sociedades humanas. Elas são produzidas nas relações humanas, assim como também por elas são destruídas ou até impedidas de nascer.

Isso acontece porque democracias liberais, como as que temos em grande parte do mundo como regime político ideal, são, como quaisquer outros sistemas políticos, historicamente construídas. E é isso que não se pode perder de vista quando as analisamos. O mesmo vale para aquilo geralmente colocado como sua antítese, os autoritarismos de diversos tipos, sob pena de cairmos nos vícios enunciados no início do texto.

Historicizar a democracia liberal é também voltar à história da Europa entre o final do século XVII e as revoluções dos séculos XVIII e XIX, passando pelo Iluminismo. Mais especificamente, no nascimento daquilo que convencionamos chamar de "Modernidade". Nesse longo recorte, a ideia de um governo moderado e constitucional para substituir a autoridade exercida pelos monarcas de maneira absoluta se tornou hegemônica.

Essa ideia de organização política não se deu simplesmente no campo abstrato, de ideias, mas no âmbito da formação de outra forma de sociedade diferente da aristocrática, predominante na Idade Moderna. Esse processo foi sistematizado pelo pensador alemão Jürgen Habermas, em Mudança estrutural da esfera pública, cuja primeira edição foi publicada em 1962. Segundo ele, a forma de sociedade que triunfou sobre o absolutismo passou pela criação de instâncias e fóruns de debate inicialmente no âmbito privado, mas que tomaram os espaços públicos conseguindo pouco a pouco influência política. Nesse processo, a razão iluminista tomou o lugar das tradições como critério de tomada de decisões que implicam na vida coletiva, da mesma maneira que a autoridade passou progressivamente a ser entendida como legítima somente a partir do uso dessa mesma razão, em detrimento dos títulos de nobreza e uma autoridade "natural" que dela emanava.

Habermas explicou que, nesse processo, o "público" que formava essa nova esfera de influência política, a "esfera pública", era diferente do "povo", no sentido de que para se fazer representar e influenciar a política dessa forma era necessário acesso a um tipo específico de autonomia, material, intelectual e livre de laços com antigas estruturas. Era o nascimento da ideia de "cidadão", segundo paradigmas forjados na Modernidade. No geral, esses cidadãos eram parte das camadas médias das cidades europeias, que só cresceram ao longo do século XIX e advento do capitalismo industrial.

As democracias surgiram também como sendo a formalização desse ordenamento social construído a partir dos valores iluministas, e sua expansão e consolidação se deu com o alargamento das noções desse mesmo "público" de cidadãos, materializado na expansão de direitos civis a minorias antes excluídas deles.

Essa explicação é para dizer que a construção da democracia como muitas vezes idealizamos remontam processos históricos que aconteceram na Europa ocidental e nos Estados Unidos ao longo da Modernidade. Mas na América Latina, esses desenvolvimentos tiveram outros ritmos.

Nessa região, não se observa historicamente esse mesmo desenvolvimento. Ainda que elites políticas latino-americanas, nos séculos XVIII e XIX e, portanto, coevas aos processos europeus, estivessem bem alinhadas ideologicamente com muito do que se passava do outro lado do Atlântico, as realidades históricas aqui sempre foram distintas.

Enfrentamos refrações no âmbito interno para o desenvolvimento dessas democracias liberais. Por exemplo, esse "público" do qual falou Habermas não teve espaço mais que limitado para se desenvolver na região, na maioria dos contextos. As enormes desigualdades sociais, intrinsecamente ligadas à formação de sociedades nas quais as oligarquias locais mandam e demandam nas estruturas políticas, são um fator importante nesse sentido. Dessas oligarquias e também dos processos de independência, a proximidade de militares nas estruturas de poder sempre foi uma constante na maioria dos países, e a violência como forma de manter estruturas sociais essencialmente antimodernas é constante.

Externamente, um empecilho à consolidação das democracias na América Latina é o imperialismo de potências como a Grã-Bretanha, no século XIX, e os Estados Unidos, do XX ao atual. Interferências diretas - invasões ou alianças de potências com articulações golpistas internas dos países - ou indiretas - via organismos internacionais - nos assuntos internos da América Latina são, também fatores de instabilidade.

Tudo isso serve para dizermos que as democracias em todo mundo, e em particular na América Latina, possuem particularidades que devem ser analisadas de acordo com as realidades históricas da região e de cada país. Na América Latina, a dependência econômica, interferências externas, golpismos internos e as enormes desigualdades sociais são fatores que devem ser considerados. Caso contrário, podemos avaliar democracias na região apenas fazendo um "check-in" de características identificáveis nos casos europeus que, querendo ou não, balizam nosso pensamento político e norteiam nossos ideais de democracia, tanto faz se à esquerda ou direitas.

Dito de outro modo, podemos ficar nos perguntando o porquê de países como Nicarágua ou El Salvador não se comportarem democraticamente como Nova Zelândia ou Alemanha apenas a partir de valores abstratos, sem considerar as diferenças de estruturas internas, posições geopolíticas ou história política de cada um deles.

Voltamos à fetichização de democracias e não democracias de outros países e seus usos. No caso da centro-esquerda e grupos socialdemocratas da região e fora dela, como definiu bem o cientista político Claudio Couto em artigo recente, há uma relutância em condenar arroubos autoritários em Venezuela, Nicarágua, Cuba e outros por essa chave de leitura. A fetichização, nesse caso, é produto menos de uma ameaça autoritária dessas esquerdas ou de equívocos racionais de análise que elas possam fazer, do que por motivações afetivas e identitárias catalisadas por valores que tais países representam ou representaram, como o combate às desigualdades sociais ou o anti-imperialismo. Não cabe nessa leitura, por exemplo, que historicamente revoluções que partiram desses valores não se congelam no tempo. O que vem depois disso não necessariamente tem compromissos com valores de emancipação humana inicialmente postos, podendo, inclusive, romper com eles e negá-los, produzindo toda sorte de abusos.

Acontece algo quase igual com direitas liberais e democráticas. A correta crítica à fala de Lula atenuando o governo autoritário da Nicarágua apareceu nesse campo com tanta veemência quando a Bolívia passou por um golpe de estado em 2019. O golpe que levou Jeanine Añez à presidência, eivado de discurso racista e fundamentalista religioso, foi tratado como "governo de transição" por vários jornais e a sua caracterização como governo golpista ou autoritário nunca aconteceu.

O fetiche com a democracia ou autoritarismo de outros países para a direita liberal aparece na rapidez na condenação como ditaduras ou autoritarismos daqueles casos de países cujos regimes se identificam com agendas anti-Estados Unidos e com o desalinhamento com o consenso neoliberal na economia, como a Venezuela de Maduro ou a Bolívia, de um lado. De outro, aparece nos silêncios às violências e golpismos de grupos ou países que representam o oposto disso, como no citado caso do golpe boliviano de 2019 ou na violência do exército da Colômbia a opositores do governo.

Enfim, os partidos e figuras políticas deveriam ter atenção a isso por dois motivos: primeiro, não produzir argumentos a seus adversários em ano eleitoral, ainda que eu tenha dúvidas quanto ao alcance desse tipo de discussão; segundo, não cair em contradição clara com suas próprias agendas e identidades políticas. Quanto a analistas, ainda que análises não sejam e nem devam ser neutras, precisam de rigor. O risco aqui é fazer análises rasas e repletas de abstrações que partem de noções a priori que pouco acrescentem.

Igor Tadeu Camilo Rocha é historiador, doutor e pesquisador de pós-doutorado pela UFMG