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OPINIÃO

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Golpismo de militares desafia tese de como morrem as democracias

Jair Bolsonaro e Braga Netto em reunião do conselho de governo - Marcos Corrêa/PR
Jair Bolsonaro e Braga Netto em reunião do conselho de governo Imagem: Marcos Corrêa/PR

Colunista do UOL

10/05/2022 17h42

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* Warley Alves Gomes

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu ontem (9) dar um basta nas tentativas de intervenção de setores militares no processo eleitoral. Fez o certo, pois não é função das Forças Armadas dar sugestões sobre o sistema eleitoral, muito menos fiscalizar as eleições. Mas não se deve compreender tal acontecimento apenas à luz do factual, ou seja, desse evento particular, mas pensá-lo a partir da nossa história e da conjuntura brasileira e global atual.

Nos últimos anos, o livro "Como as democracias morrem", de autoria de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ganhou notoriedade no Brasil ao apontar os fatores que podem levar à instauração de autocracias — governos autoritários que se estabelecem dentro de processos democráticos e terminam por corroê-los.

O sucesso do livro em terras tupiniquins não tem sido gratuito, pois não é preciso muita imaginação para associar esse risco à pessoa do presidente Jair Bolsonaro, que reúne diversos elementos de um potencial autocrata: a rejeição às regras democráticas, a negação da legitimidade de seus rivais políticos, o incentivo à violência e o ataque às liberdades civis, inclusive à imprensa.

No entanto, se o livro de Levitsky e Ziblatt trouxe contribuições importantes para a compreensão do momento político em âmbito nacional e global, a associação dos pressupostos apresentados ao contexto brasileiro deve ser vista com alguma reserva.

Uma das ideias centrais do livro vem sendo repetida por diversos analistas e cientistas políticos: as ditaduras atuais não se instalam mais a partir de golpes, mas antes através da deterioração gradual das instituições democráticas.

Isso se aplica a países como Venezuela, Rússia e boa parte do Leste Europeu, mas, para o caso brasileiro, é preciso avaliar dois antecedentes: a invasão do Capitólio pelos apoiadores de Donald Trump no dia 6 de janeiro de 2021 e o imbricamento crescente dos militares com o governo Bolsonaro.

A invasão do Capitólio marcou uma ruptura no modus operandi autocrata. Ainda que a invasão tenha fracassado, o recado estava claro: para chegar ao poder vale tudo, inclusive a deslegitimação aberta do processo eleitoral através do caos.

Desde então, Bolsonaro, que atua como uma bizarra imitação de Trump, resolveu antecipar o golpismo e vem, sistematicamente, questionando o voto eletrônico. Havia recuado após o fracasso do 7 de Setembro passado, mas agora, frente à possibilidade de vitória de Lula, retomou os ataques e vem pedindo a participação dos militares em uma possível aventura golpista, o que é péssimo para as instituições militares, que ainda têm contas a acertar com o país e seu próprio passado.

É claro que não podemos generalizar as Forças Armadas, pensando-as como um setor exclusivamente golpista. Com certeza, há militares sérios e dispostos a manter o sistema democrático. Mas a crescente simbiose deles ao governo de Bolsonaro se insere em um problema histórico destas mesmas forças: a sua dificuldade em compreender seu lugar institucional, suas funções burocráticas e sua própria história.

Às Forças Armadas cabe a defesa das fronteiras do território. Não cabe opinar no processo eleitoral ou se manifestar politicamente, e não deveria interessar a ninguém o que um general pensa a respeito de situação X ou Y da política nacional. Os militares são burocratas que devem servir ao Estado com o maior critério de impessoalidade possível. Como tal, cumprem melhor sua função quando não opinam publicamente. Enquanto cidadãos, podem dizer o que quiserem dentro de suas casas e entre seus amigos, como qualquer um de nós.

Refletir sobre as recentes aproximações entre Bolsonaro e os militares à luz da História significa não apenas trazer à tona o histórico de golpes dados pelas Forças Armadas — o de 1964 sendo apenas o último deles —, mas pensar o momento presente a partir das incertezas e do dinamismo contidos na realidade mesma.

É nesse sentido que nosso atual cenário pode configurar uma infeliz novidade no surgimento das autocracias contemporâneas, com a possibilidade de a corrosão das instituições democráticas ser acelerada por um golpe de Estado no sentido mais conhecido do termo: com o apoio das Forças Armadas.

Na escalada autoritária do bolsonarismo, outros países podem servir de parâmetro, mas nunca devem ser pensados como modelos fechados. É preciso lembrar que, na invasão do Capitólio, os militares foram leais à Constituição norte-americana e não apoiaram o trumpismo. Já no Brasil, estas mesmas forças parecem plenamente contaminadas pelo presidente da República.

Na hipótese de um acontecimento semelhante à tentativa de golpe nos Estados Unidos, resta saber se nossos militares irão se comportar com a dignidade que o cargo e suas patentes exigem, repudiando de forma veemente as loucuras de Bolsonaro, ou se permanecerão rebaixados ao nível do atual presidente, provavelmente o mais vil de nossa história. A julgar pela atuação do ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira, a última hipótese é a mais provável.

* Warley Alves Gomes é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Também se dedica à escrita literária, tendo estreado com a publicação do romance O Vosso Reino, uma distopia realista que remete ao Brasil contemporâneo.