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Projeto de militares coloca o Brasil a serviço das Forças Armadas

General Eduardo Villas Bôas e o presidente Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira/Folhapress
General Eduardo Villas Bôas e o presidente Jair Bolsonaro Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Colunista do UOL

01/06/2022 18h52

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* Carla Teixeira

Concluído em fevereiro e divulgado no dia 19 de maio, o documento "Projeto de Nação - o Brasil em 2035" é mais uma demonstração do desprezo dos militares pela soberania popular no Brasil. Elaborado pelos institutos General Villas Bôas, Sagres e Federalista, o projeto contou com a presença do vice-presidente Hamilton Mourão e do chefe do Estado-Maior do Exército Brasileiro na cerimônia de apresentação, realizada na semana passada.

O texto aponta para o combate ao "globalismo", a cobrança de mensalidade nas universidades públicas e no Sistema Único de Saúde e a exploração da Amazônia. O fim dos serviços públicos no Brasil, de acordo com o plano, se dará mediante a manutenção dos militares no poder até 2035.

Para que isso seja possível, o documento prevê a criação de um Centro de Governo. Trata-se de um órgão burocrático independente da administração federal que cuidaria de implantar as propostas sem sofrer qualquer efeito oriundo da mudança de governo provocada pelas eleições. Na prática, é o esvaziamento da soberania popular. Qualquer governante eleito teria tanto poder quanto a rainha da Inglaterra. Sua efetivação pode estar em curso com o avanço da proposta de semipresidencialismo na Câmara dos Deputados.

No texto do projeto, o anticomunismo dá lugar ao "globalismo", que (não duvidem!) exigirá uma lei de segurança nacional para combater o "inimigo interno" (aquele que era chamado de "terrorista" durante a ditadura militar). Assim, deputados extremistas que "ideologizam" a política e professores da rede pública que "doutrinam crianças" serão retirados de suas funções. A autonomia universitária deve ser suplantada através da nomeação de reitores que sejam antagônicos a essa vertente globalista/esquerdista

Os recentes cortes no orçamento da educação mostram que os planos de precarizar para privatizar já estão em curso. Atualmente, mais de 20 instituições federais de ensino estão sob a intervenção de reitores que não foram escolhidos pela comunidade acadêmica.

A implementação do projeto está prevista para ocorrer via Decreto. A centralização administrativa proposta representa a ideologia da geração formada na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) na década de 1970. Os generais Hamilton Mourão, Augusto Heleno, Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos são alguns dos que concluíram sua formação durante o período mais violento da ditadura e hoje estão no governo louvando o golpe de 1964, exaltando torturadores e atacando o processo eleitoral, tudo isso enquanto "acabam com a mamata" recebendo salários que ultrapassam os R$ 800 mil por ano.

Causa espécie constatar a falta de compromisso dos generais com o povo brasileiro. Em situação de flagrante privilégio, os militares não foram atingidos pela reforma previdenciária. Estudam em colégios militares financiados com recursos do Estado, recebem salários para isso e têm o tempo de formação contado para a aposentadoria a partir dos 12 anos de idade. Usufruem de assistência médica e odontológica para toda a família em rede exclusiva, ganham altos salários e querem cobrar do povo brasileiro pelos serviços públicos e gratuitos de educação e saúde previstos na Constituição de 1988. Em outras palavras: para as corporações militares, estado máximo. Ao povo brasileiro, estado mínimo. É um escárnio!

Convém lembrar que as universidades públicas e o SUS foram o esteio da sociedade brasileira durante a pandemia. Enquanto Bolsonaro divulgava falsos tratamentos e atacava a democracia com apoio dos generais, as universidades públicas e institutos de pesquisa produziram e distribuíram álcool em gel, vacinas, fizeram testes e um sem número de sequenciamentos genéticos para entender as mutações do coronavírus no Brasil. O Exército, por sua vez, produziu e distribuiu a ineficaz cloroquina superfaturada para o país todo enquanto comandou, através do general Pazuello, o morticínio de mais de 200 mil brasileiros na gestão do Ministério da Saúde.

O projeto apresentado reflete inteiramente o que pensa o Exército Brasileiro a respeito do Brasil nos mais diversos setores. Ou seja, é a cristalização do pensamento militar estendido para o restante da sociedade. Jair Bolsonaro é apenas "marmita de milico". Os generais não têm votos e usam o capitão para manter o poder e efetivar seus planos macabros. Não foi coincidência a tentativa de votação da PEC 206/2019 que institui a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, na Câmara dos Deputados, cinco dias após a divulgação do documento. Os militares marajás sinalizaram para os rentistas predadores, via Congresso, que apoiam e pretendem efetivar o neoliberalismo no Brasil.

Alguns candidatos democratas, em seus discursos, tentam separar o bolsonarismo das corporações militares. Parece que ainda não entenderam o tamanho do problema posto na política nacional. Ou têm medo de enfrentar a dura realidade que mostra o Partido Militar como obstáculo para a efetivação da democracia no Brasil. Não são generais bolsonaristas que estão no governo, mas generais que usam o bolsonarismo para se manter no governo. O problema não é um ou outro integrante das armas, mas a própria corporação que tem um projeto próprio para subjugar todo o Brasil aos seus interesses.

A sociedade civil, como um todo, precisa enfrentar a mentalidade que impera nos comandos das Forças Armadas. Não basta vencer o bolsonarismo nas urnas, é preciso mandar os militares de volta aos quartéis. É urgente trabalhar pela reformulação do ensino militar, da Justiça militar e da inteligência militar, que mantêm a estrutura dominante nas corporações militares.

Sem um plano consistente de defesa e a reformulação do papel das Forças Armadas, o Exército brasileiro seguirá sendo o braço forte e a mão amiga da dominação estrangeira sobre nosso país. O desafio histórico de um próximo governo democrático será definir se seguiremos com o Brasil a serviço das Forças Armadas ou se finalmente subjugaremos nossas Forças Armadas aos interesses do Brasil e do povo brasileiro.

* Carla Teixeira é doutoranda em História na UFMG