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Governo Bolsonaro transformou Brasil em circo sem pão

pobreza, ribeirão preto-sp, fome - Getty Images
pobreza, ribeirão preto-sp, fome Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

06/06/2022 11h25

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* Vinícius Rodrigues Vieira

Um circo sem pão foi o que se transformou uma sociedade cujo governante ri de mortes trágicas, curte a vida adoidado e, ainda assim (ou talvez por isso mesmo), ainda goza de popularidade suficiente para pleitear sua continuidade no poder. Não estamos falando da Roma Antiga, mas do Brasil Contemporâneo. De fato, em meio a estômagos vazios e ironias acerca de mortos por falta de ar, Jair Messias Bolsonaro personifica a destruição de um país repleto de paragens onde a máxima bíblica "nem só de pão vive o homem" foi distorcida ao extremo.

Nesta segunda (6), o UOL começou o dia destacando que o programa Alimenta Brasil recebeu irrisórios R$ 89 mil ante quase R$ 600 milhões disponibilizados uma década antes. Programas de alimentação destinados aos mais carentes sempre foram criticados pelas elites — classe média inclusive — como reflexo da lógica panis et circenses que teria mantido as massas controladas durante boa parte dos cinco séculos de existência do Império Romano.

As elites parecem não ter problema para se alimentar. No entanto, lhes pergunto se conhecem o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), responsável por subsidiar o acesso de milhares de assalariados a restaurantes e/ou supermercados. Por que os mais pobres, sem emprego e carteira assinada, também não devem ser assistidos pelo Estado?

São Matheus, no versículo quatro, capítulo quatro de seu Evangelho, reporta que Jesus disse: "'Está escrito: 'Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus'". É a origem da máxima com a qual abri este texto. Substitua a expressão "da boca de Deus" por "do espírito" — sem prejuízo da fé individual e do respeito que os crentes devotam ao Todo-Poderoso.

Entramos, portanto, no reino da cultura — ou seja, daquilo que nos faz humanos e impede que sejamos máquinas programadas para nascer, crescer, trabalhar e morrer. Em cidades pequenas, o custo para tanto deve, porém, chegar a quase R$ 1 milhão. Esse é o valor próximo ao cachê e demais custos para a apresentação de sertanejos que, não coincidentemente, aderiram em massa ao (des)governo Bolsonaro.

Nota-se aqui que a crítica não é ao fato de cidades pequenas, muitas delas dependentes de verbas federais, investirem recursos em cultura e entretenimento. O problema reside na desproporção do valor investido (ou desperdiçado) numa única atração do showbusiness em detrimento do fomento à cultura popular e outras formas de alargar o espírito, notadamente a educação.

Nem só de pão vive o homem. Mas podem os governos sobreviver numa sociedade em que falta pão? Não se deve descartar uma resposta afirmativa a essa pergunta, até porque Bolsonaro ostenta elevados índices de intenção de voto, mesmo considerando a tragédia da covid, a inflação galopante e a notória ineficiência de um presidente que parece viver em férias eternas, viajando às nossas custas sem propósito de Estado.

A coluna apurou que já há o deslocamento de funcionários da embaixada em Washington apenas para organizar a visita do presidente a Orlando, onde oficialmente está prevista a inauguração de um vice-consulado nesta semana e, de modo não oficial, um encontro de Bolsonaro junto a seus apoiadores mais radicais em uma churrascaria na cidade, local onde ocorrerá o 1º Congresso Conservador Brasileiro da Flórida, organizado por um grupo que tem o sugestivo nome de Yes Brazil USA.

'Bozo' é uma das alcunhas nada lisonjeiras atribuídas ao presidente. Neste governo, porém, os palhaços somos nós. O circo romano incluía espetáculos grotescos, como cristãos devorados por leões. Hoje, os seguidores de Cristo têm a alma devorada pelo espírito de porco do bolsonarismo, e o corpo lentamente decomposto pelo dragão inflacionário. O cosplay de Nero come picanha na Flórida enquanto nosso sangue jorra da ferida aberta pelo punhal da subserviência.

O consolo que resta é saber que, diferentemente das "pessoas da sala de jantar", aqueles que se opõem ao governo não são "ocupados em nascer e morrer" — expressão, profeticamente, incluída por Caetano e Gil em Panis et Circenses, música subtítulo do disco clássico Tropicália. Sem pão, a civilização tropical segue sendo um circo (literalmente) mais bem armado do que nunca.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.