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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Para desbolsonarizar o Brasil, será preciso um choque de republicanismo

Jair Bolsonaro acompanhado dos filhos Flávio, Carlos e Eduardo - Reprodução/Flickr
Jair Bolsonaro acompanhado dos filhos Flávio, Carlos e Eduardo Imagem: Reprodução/Flickr

Colunista do UOL

08/06/2022 10h38

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* Moysés Pinto Neto

Conforme se aproximam as eleições de outubro, e com a perspectiva de derrota do presidente Jair Bolsonaro nas urnas, chega o momento de discutir como se dará a tortuosa tarefa de desbolsonarizar o Brasil, a ser levada adiante pelo próximo governo, visando não apenas reparar os danos causados pelo bolsonarismo, mas construir um novo horizonte democrático que feche portas para seu retorno ao poder.

De alianças internacionais, passando por um choque de republicanismo até a posição de vanguarda ecológica, listo abaixo alguns dos elementos que julgo serem centrais para que essa tarefa seja levada adiante.

Aliança com Biden

O próximo vencedor das eleições pode ter mil desavenças com o presidente norte-americano Joe Biden. Mas eles terão um interesse em comum: conter as fileiras fascistas que ameaçam os respectivos regimes políticos.

Os Estados Unidos estão numa situação tão grave quanto o Brasil, com algumas diferenças. Enquanto por lá os segmentos supremacistas estão plenamente organizados e visceralmente ligados em vários conectores comunitários, por aqui eles estão mais dispersos.

Ao mesmo tempo, como regra automática no Brasil, a estrutura é mais perversa e naturalizada. O caos é nosso próprio modo de funcionamento da violência. Portanto, em ambos os casos os efeitos são catastróficos. Biden tem interesse em neutralizar o trumpismo, parceiro do bolsonarismo, entendendo-o como uma ameaça que beira ao terrorismo interno em solo estadunidense.

Por isso, a pressão sobre os movimentos bolsonaristas no Brasil pode ser pensada em aliança com os Estados Unidos.

Pressão internacional

O segundo ponto se conecta ao primeiro. Bolsonaro é um pária internacional e figura como liderança tóxica para os demais países, com exceção de Rússia, Polônia e Hungria. Mesmo países com governos de centro-direita, como o Uruguai e o Chile até recentemente, não têm qualquer interesse na aproximação com Bolsonaro, que é visto como lunático e fundamentalista.

A Europa, cujo líder principal agora é o presidente francês Emmanuel Macron, está muito bem sinalizada nesse sentido. Então um dos principais pontos para recuperar a força diante dos movimentos bolsonaristas é incentivar e se aproveitar da pressão de fora para dentro, enfraquecendo sobretudo os militares com vocação golpista e ideias reacionárias.

Como a economia mundial é toda interconectada, mesmo o apoio massivo do empresariado a Bolsonaro terá que ser suavizado pelo risco de perda das atividades econômicas.

Re-republicanização

O bolsonarismo é um movimento tendencialmente totalitário. Como notou a filósofa Hannah Arendt e ao contrário de boa parte do equivocado diagnóstico liberal, os movimentos totalitários não são nacionalistas nem estatistas; eles tendem a duplicar as estruturas de poder a fim de confundir as noções de direito e autoridade, permitindo que o líder tenha poderes absolutos e, sobretudo, imprevisíveis. A imprevisibilidade é condição para o terror.

Assim, é preciso re-republicanizar o Brasil: eliminar todas as duplicações, inclusive a duplicação estrutural do papel do Exército (fazendo-o voltar ao seu lugar de origem), revogar a legislação da "boiada" e reativar os vínculos republicanos entre os servidores públicos, readmitindo demitidos que o foram por realizar seu trabalho, dando autonomia para que possam trabalhar adequadamente e investigando todas as anomalias do período anterior.

Responsabilização

O bolsonarismo conta com a desmemória e impunidade brasileira. Durante três décadas, as responsabilidades oriundas da ditadura militar foram engavetadas sob a justificativa de "evitar o revanchismo".

O resultado foi a volta dos mesmos atores e mesmas barbaridades em nova embalagem. É preciso ter coragem de colocar, sim, as forças da ordem que colaboraram para o governo Bolsonaro em questão, traçando as responsabilidades até o fim em relação aos crimes que praticaram.

Em relação à pandemia, em particular, haverá um rol gigantesco de ilícitos que foram praticados e colaboraram para que os quase 700 mil mortos brasileiros excedessem qualquer comparação proporcional com outros países. Crimes contra a humanidade, corrupção, prevaricação e improbidade administrativa foram praticados em alta escala e precisam ser punidos.

Frente republicana

O próximo governante deve sentar com as principais lideranças políticas brasileiras de todas as correntes e formar uma frente paralela à sua base de apoio governista.

Seria possível envolver, também, a sociedade civil tanto em setores progressistas quanto conservadores, com a função específica de apoiar as medidas de re-republicanização propostas atrás. Sua única meta seria desarticular o bolsonarismo e sua vocação fascista para permitir que o Brasil volte a funcionar minimamente como uma democracia que respeita as regras do jogo.

Devemos lembrar que Bolsonaro, por exemplo, não reconhece a Justiça Eleitoral, ameaça não cumprir ordens do Supremo Tribunal Federal, ameaça a oposição de fuzilamento, estimula a compra de armas para autodefesa contra uma "ditadura", defende remédios comprovadamente ineficazes contra a covid, entre outras coisas a indicar que não se trata apenas de diferenças entre visões políticas ou econômicas, mas de uma ameaça estrutural a qualquer projeto de Brasil decente guiado pela noção de Estado de Direito.

Ecologia e Big Techs

As duas grandes pautas do século XXI são as mudanças climáticas e o poder incontrolável das grandes empresas de tecnologia. Em ambas, o Brasil pode ocupar a vanguarda para formar um contraste com o bolsonarismo.

A ascensão da extrema direita a partir de 2016 levou a uma virada da conjuntura mundial, com o crescimento dos respectivos partidos, mas também com uma vitória substantiva da esquerda ou dos partidos progressistas ao longo do mundo.

A Europa hoje tem a Alemanha pós-Merkel e a França que, mesmo Macron sendo centrista, ao menos rechaça o fascismo. Na América do Norte, além de Biden, temos Trudeau (Canadá) e López Obrador (México), e podemos dizer que praticamente toda a América do Sul — inclusive a Colômbia, talvez — poderá estar com governos à esquerda. Nenhum desses países tem interesse no fortalecimento das forças fascistas no seu interior.

Por isso, o Brasil pode ocupar um papel importante nas negociações, sobretudo pela virada de cento e oitenta graus que deu na temática. Em relação às Big Techs, será preciso buscar uma regulamentação - em especial com a quebra dos monopólios, debate sobre políticas de algoritmo e definição de parâmetros justos para o trabalho de plataforma. Na ecologia, o país deve buscar a transição energética a partir de propostas econômicas que compensem os efeitos da desaceleração do crescimento com justiça global distributiva.

Violência interna

Um dos legados do bolsonarismo foi ter chegado próximo de oficializar toda zona cinza de violência brasileira vinda das duplicações de autoridade, onde o mais forte prevalece e tem direito, mediante armas de fogo, de impor suas vontades sobre as populações mais vulneráveis, como pobres, negros, indígenas, quilombolas, população LGBT, entre outras.

Isso se deu com a vista grossa para coronéis, milícias, jagunços, garimpeiros, grileiros, enfim, todo tipo de controle informal voltado para o extrativismo. Ao mesmo tempo, as forças de controle mostraram-se, muitas vezes, omissas — uma vez que ideologicamente alinhadas ao bolsonarismo.

Para enfrentá-lo, será necessário desatar esse nó. Colocar ordem interna nas corporações da força e colocar ordem externa nas "terras sem lei" que o bolsonarismo chancelou e até estimulou. Retomar esse controle envolverá decisões fortes, mas inevitáveis, por isso todo aparato anterior de legitimidade.

Evangélicos

Segundo as pesquisas de opinião, Bolsonaro só vence em quatro segmentos: homens, ricos, evangélicos e empresários. Os empresários e os ricos são uma minoria irrelevante do ponto de vista eleitoral. Vamos para os evangélicos. Embora esse seja um diálogo difícil, sobretudo junto a seus segmentos mais conservadores ou atrelados a pastores, há uma ponte possível.

A maioria entre evangélicos é composta de mulheres negras. E há problemas estruturais que as atingem como mulheres negras. O fundamentalismo é muitas vezes uma reação defensiva, por exemplo, à exposição dos filhos às drogas ou à sexualidade precoce. Por isso, têm medo da esquerda que critica a criminalização ou defende a educação sexual nas escolas.

Como desatar o nó? Tocando a raiz do problema. O problema para estas mães, como disse Juliano Spyer no podcast Café da Manhã, é por exemplo o contraturno em que as crianças não estão na escola e ficam expostas aos riscos. Um serviço social que acolhesse ou um estímulo econômico para que estas mulheres não precisassem trabalhar fora durante o período em que criam os filhos — que nada mais é que pagamento de trabalho reprodutivo - poderia desfazer a resistência a temáticas polêmicas.

* Moysés Pinto Neto é doutor em Filosofia pela PUC-RS e professor da Universidade Luterana do Brasil