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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Bolsonaro mira golpe para atingir acomodação

Bolsonaro no Congresso, para a promulgação da Emenda Constitucional nº 123 de 2022 - Alan Santos/PR
Bolsonaro no Congresso, para a promulgação da Emenda Constitucional nº 123 de 2022 Imagem: Alan Santos/PR

Colunista do UOL

21/07/2022 10h09

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* Murilo Cleto

Desde 2018, o debate público nacional tem se orientado pela seguinte pergunta: quais as reais chances de Jair Bolsonaro dar um golpe de Estado? Incontáveis artigos, livros e seminários acadêmicos têm se debruçado sobre o tema, que não é fortuito, já que Bolsonaro não apenas é o primeiro apologista da ditadura militar a ocupar a presidência desde a redemocratização, mas, uma vez eleito, fez questão de seguir insinuando, com maior ou menor sutileza, que poderia capitanear uma ruptura institucional.

O roteiro é mais ou menos o mesmo: o presidente faz a ameaça, o debate público se escandaliza, a oposição cobra responsabilização, algum jornalista da Jovem Pan relativiza, o procurador-geral Augusto Aras se finge de morto e mais uma vez nada acontece.

No 7 de setembro último, Bolsonaro levou esse exercício ao extremo. Apoiadores em Brasília produziram imagens tragicômicas celebrando, às lágrimas, uma corrente de WhatsApp que dava como concretizada a decretação de estado de sítio. Muitos se recusaram a deixar a capital federal ou as estradas ocupadas mesmo depois do pedido do então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.

O episódio é emblemático e pode ajudar a orientar a resposta ao questionamento que abre esse artigo: quais as reais chances de Jair Bolsonaro dar um golpe de Estado? A resposta objetiva seria: quase nenhuma. Se houvesse uma possibilidade factível de autogolpe, os bolsonaristas teriam dado naquele feriado. Vontade não faltou.

Mas esse diagnóstico pode gerar uma reação preguiçosa, que é a de encarar todas as ofensivas antidemocráticas do presidente como meros blefes, coisa que não são. Além disso, uma tentativa de golpe não precisa ser bem-sucedida para ser suficientemente traumática. Basta que algumas dezenas desses fanáticos que vivem intensamente a fantasia bolsonarista vão até o fim com ela, como ocorreu em Foz do Iguaçu, no assassinato do petista Marcelo de Arruda.

Uma hipótese mais realista, no entanto, sugeriria um desfecho menos espetaculoso do que aquele que, em 1964, resultou no exílio de João Goulart.

A essa altura, Bolsonaro já sabe que vai perder a reeleição. E sabe também que são grandes as chances de ser implicado criminalmente em pelo menos algum dos tantos escândalos de seu governo ou pelas incontáveis manifestações de incentivo à violência política. Em maio, quase dois meses antes do episódio em Foz do Iguaçu, Bolsonaro sugeriu "um tiro só ou uma granadinha" para "matar todo mundo" que apoia o ex-presidente Lula.

Apesar de ser um ignorante orgulhoso, Bolsonaro sabe que o Brasil tem uma longa tradição de acomodação. Durante todo o processo de transição, os militares chantagearam o sistema político para que aceitasse a Lei da Anistia nos seus termos. E qualquer iniciativa de revisão depois, ainda que amparada pela carta constitucional e pela legislação internacional, foi tachada de "revanchista".

Isso só foi possível porque, durante o esfacelamento do regime, extremistas da direita tocaram o terror na sociedade brasileira. Plantaram dezenas de bombas em jornais, escritórios de advocacia, entidades de direitos humanos e até bancas de revista. E nada indica que dessa vez seria diferente.

Ainda era noite de 7 de setembro quando a turma do "deixa disso" apareceu para começar a costurar a pax entre o presidente e Alexandre de Moraes. Repercutiu menos do que deveria, talvez porque o ministro tem se destacado como principal polo de contenção institucional do governo, mas, na ocasião, Bolsonaro disse que a parte de Moraes no acordo previa o arquivamento de inquéritos no Supremo. Se for verdade, é gravíssimo. Se for mentira, também. Fato é que ninguém foi chamado para dar explicações.

Esta, no fim das contas, é a finalidade da retórica golpista. Bolsonaro mira o golpe para colher pelo menos uma acomodação. Bon vivant e notório alérgico ao trabalho, tudo que quer é passear de lancha com o dinheiro do contribuinte enquanto diz umas atrocidades e continua elegendo os filhos. E, para isso, nada melhor do que demonstrar agora uma força que não tem e provocar uma transição vantajosa para si. Com receio de mais tragédias, as instituições podem ceder.

Não se trata de minimizar a ameaça golpista. Bolsonaro nunca fez questão de esconder que sonha com um regime autoritário para chamar de seu. Mas, se as condições não permitirem, uma saída intermediária já seria grande coisa para quem agiu como ele no exercício da presidência.

Durante todo mandato, Bolsonaro fez como um jogador de futebol que, na barreira, fica avançando para encurtar a distância da bola na cobrança da falta. Ele sabe que o juiz é fraco. Cada vez que lhe mandam voltar dois passos, ele dá somente um. E assim vai até o atacante adversário chutar.

O episódio de Foz do Iguaçu não foi o primeiro e não será o último. Os bolsonaristas promoverão a maior arruaça eleitoral da história do país. Vão filmar urnas, ameaçar mesários, distribuir boatos sobre a apuração dos votos, se meter em todo tipo de confusão e até morrer pela causa.

A estratégia parece cruel e de fato é. Enquanto faz declarações ambíguas sobre as urnas e o Capitólio, estimulando seus seguidores fanáticos a promover desordem e mandando-os para morte como kamikazes, Bolsonaro investe pesado no próprio futuro livre de qualquer responsabilização pelo pior mandato democraticamente eleito da República brasileira e desafia os limites da histórica leniência do país com o terrorismo de extrema direita. Em 2022, o Brasil terá a chance de fazer diferente. Assim seja.

* Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná