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Sem lideranças evangélicas e do agro, carta pela democracia soa elitista

28.07.22 - Vista do Pátio das Arcadas da  Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no Largo São Francisco, no     centro de São Paulo, nesta quinta-feira, 28 de julho de 2022. O diretor da Faculdade, Celso Campilongo, convocou para o dia 11 de agosto um ato em defesa da democracia no local. - BRUNO ROCHA/ESTADÃO CONTEÚDO
28.07.22 - Vista do Pátio das Arcadas da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no Largo São Francisco, no centro de São Paulo, nesta quinta-feira, 28 de julho de 2022. O diretor da Faculdade, Celso Campilongo, convocou para o dia 11 de agosto um ato em defesa da democracia no local. Imagem: BRUNO ROCHA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

02/08/2022 16h37

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* Vinícius Rodrigues Vieira

Em meio à euforia, é necessário ter os pés no chão para não acabarmos como gado ou atropelados pelo rebanho. A "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito", articulada por professores da Universidade de São Paulo (USP), é um sucesso absoluto com mais de 600 mil adesões. Seus signatários originais, porém, expressam uma elite que ignora dois segmentos sem os quais nenhuma ordem política se sustenta no Brasil atual: o agronegócio e os evangélicos.

Causa espécie não ter havido entre os signatários iniciais nenhuma liderança cristã, exceto os católicos Dom Pedro Luiz Stringhini (Bispo de Mogi das Cruzes e Presidente da Regional Sul 1 da Conferência Nacional de Bispos do Brasil, a CNBB) e Júlio Lancellotti, o padre à frente da Pastoral do Povo da Rua em São Paulo. Também cabe citar a adesão de Frei David, franciscano que lidera a Educafro, ONG que avançou o debate sobre ações afirmativas no Brasil e promove a educação de negros e pobres.

Por sua vez, o agronegócio está representado pelo pecuarista Pedro Camargo Neto, que ocupou cargos no Ministério da Agricultura durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e pelo agropecuarista Steven Eriksen Binnie.

É muito pouco para representar um setor econômico sem o qual o Brasil teria problema em suas contas externas. Isso para não dizer que nenhum líder evangélico — grupo que perfaz entre 29% e 33% da população segundo o Datafolha — juntou-se aos signatários originais. Faltam ainda lideranças negras à exceção de Frei David. Lideranças indígenas somam apenas quatro adesões.

Mais preocupante, porém, é a não adesão de líderes do agro e evangélicos. Isso porque as melhores evidências indicam que tais segmentos estão fechados com o presidente Jair Bolsonaro (PL). Certamente nem todos os eleitores desses grupos concordam com a cruzada do atual chefe do executivo contra o sistema eleitoral e, portanto, a democracia, haja vista que não há a menor evidência de fraude desde que as urnas eletrônicas foram implementadas.

No entanto, ao fazerem ouvidos moucos para as diatribes presidenciais, lideranças do agro e evangélicas chancelam os ataques contra a democracia e, assim, alimentam a retórica golpista de Bolsonaro. Assim, aumentam as chances de que o presidente encontre eco às sugestões de que o manifesto é elitista.

A grande inspiração para a missiva foi a Carta aos Brasileiros de 1977, lida pelo jurista Goffredo da Silva Telles Júnior — um insuspeito ex-integralista (ancestral do bolsonarismo na extrema-direita brasileira) — na Faculdade de Direito da USP. À época, as camadas médias urbanas, crescentemente secularizadas e vinculadas a uma emergente economia industrial, estavam em ascensão. Hoje, esse papel é predominantemente ocupado pelo agro e evangélicos.

Por isso, o bolsonarismo não pode ser dado como morto. Ainda que seu líder-mor não se reeleja, esse movimento político e seu lastro social estão fadados a serem atores políticos relevantes, liderando, ao lado de militares, a oposição a um muito provável governo Lula.

A democracia vingará nestas terras apenas caso seus defensores não estejam apenas nas Arcadas e entre os muros que separam a Cidade Universitária da USP do mundo real. Democracia depende da participação e legitimidade dos fazendeiros do Cerrado e de fiéis que, após o trabalho e nos fins de semana, frequentam igrejas evangélicas na Celso Garcia, avenida no coração do Brás, em São Paulo, onde se destaca o Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus.

Cabe a lembrança do reacionário Nelson Rodrigues à Passeata dos Cem Mil, que enfrentou a ditadura militar em 1968 pouco antes do AI-5. Como escreveu o jornalista Otavio Frias Filho, "o dramaturgo colocou todas as suas caricaturas desfilando no protesto — a grã-fina de narinas de cadáver, o padre de passeata etc. Todo mundo foi, dizia, menos o povo".

No mesmo texto, publicado em 1995, Frias Filho fez uma análise das elites na ditadura que ainda é válida para os dias de hoje: "durante os 20 anos de regime militar, sempre que aconteceram manifestações de rua quem promovia e participava era gente de classe média, especialmente os estudantes. Houve as greves do ABC. Mas não seria difícil catalogar a aristocracia operária que fez aquelas greves, pelo seu perfil de renda e consumo, como parte da classe média. O povo propriamente dito continua sendo um enigma abissal". O mesmo se aplica à democracia na república brasileira — fundada longe do povo e ainda distante dele.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.