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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Conjuntura externa favorece golpismo de empresários e ambivalência militar

Ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira  - Roque de Sá/Agência Senado
Ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira Imagem: Roque de Sá/Agência Senado

Colunista do UOL

18/08/2022 12h37

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* Vinícius Rodrigues Vieira

Com quantos covardes se faz um golpe de Estado? Não há fórmula matemática para definir. Porém, a experiência histórica indica que, na América Latina, uma ruptura capitaneada pela direita não se sustenta sem apoio dos Estados Unidos, da burguesia transnacional e doméstica, dos militares e de camadas médias da população, inclusive profissionais religiosos-intelectuais, entre eles jornalistas, professores, padres e pastores.

Na conjuntura atual, Washington já se colocou contra um golpe bolsonarista. A burguesia transnacional — inclusive com suas representações domésticas nos setores industrial e financeiro — aderiu à Carta pela Democracia, lida na semana passada. Jornalistas e professores universitários também parecem estar contra as diatribes do inquilino do Planalto.

Há, porém, entre extratos médios e parte do empresariado provinciano, aqueles que se seduzem pela cadela do fascismo no cio, como ficou evidente a divulgação de mensagens de WhatsApp trocada por empreendedores bolsonaristas, focados geralmente no mercado doméstico. E os militares? Onde eles ficam?

Notas de bastidor e reportagens com fontes em off na imprensa sugerem que os militares não embarcarão em aventuras contra a democracia. Mas é preciso perguntar: será que o que eles entendem por "democracia" inclui o eventual uso canhestro do artigo 142 da Constituição, citado por bolsonaristas como base para fundamentar uma eventual intervenção militar? Não está claro. Há ainda rachaduras evidentes no agro e no setor industrial, os quais ainda tendem ao bolsonarismo ao lado da pequena burguesia.

A adesão persistente de evangélicos — que já podem ser um terço da nação — e seus pastores ao bolsonarismo sugere que tal grupo, em média, é pouco ou nada afeito à noção de democracia liberal que fundamenta a Carta de 1988. Fiquemos com a fala da primeira-dama Michelle Bolsonaro durante culto em que ela diz que o Planalto já teria sido consagrado a demônios: "Eu sempre falo e falo para ele (Bolsonaro), quando eu entro na sala dele e olho para ele: essa cadeira é do presidente maior, é do rei que governa essa nação".

Mais do que retórica de quem quer se agarrar ao poder de todo modo, a fala de Michelle reflete um pensamento teocrático não restrito a evangélicos de que Deus está no comando e sua vontade é expressa pelo voto popular ou eventos históricos.

"Sois rei? Sois rei? Sois rei?", pergunta Bolsonaro, na prática, ao desafiar as instituições, tal e qual o personagem de Jô Soares — um monarca anão do impagável Viva o Gordo que satiriza a pequenez do poder real. Para si e seus asseclas, o presidente da República é o rei ao qual todos devemos nos curvar.

Faríamos isso se invertebrados fôssemos. Mas quantos ainda têm espinha dorsal nas Forças Armadas? Espero que muitos, mas a conjuntura internacional favorece o surgimento de uma fauna sem limites no jardim dos invertebrados no qual se transformou o Brasil desde a ascensão do bolsonarismo.

Diferentemente do que se passava durante a Guerra Fria, os Estados Unidos não mais detêm a supremacia econômica no Hemisfério Ocidental. China e, em particular, Rússia veriam com bons olhos uma autocratização do Brasil.

Na ausência de evidências sólidas sobre como membros do alto escalão das Forças Armadas se comportariam caso fossem convidados a esticar a corda a favor do bolsonarismo, sinto-me obrigado a fazer uso das informações disponíveis para o pagador de impostos que, como eu, banca a estrutura estatal — inclusive a militar.

Ao buscar publicações que expressem o pensamento dos verde-oliva sobre essa conjuntura, deparei-me com o trabalho "BRICS e a geopolítica mundial após 2008", do oficial Danilo França de Oliveira, filho do general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. O texto foi apresentado em 2019 à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Ciências Militares, com ênfase em Defesa Nacional.

Num texto bastante equilibrado e competente, Oliveira resume o cenário global pós-crise de 2008:

"Conclui-se que a atual geopolítica mundial está caracterizada, principalmente, pela perda da hegemonia americana e pelas consequências advindas de ações estratégicas da China e da Rússia. A Rússia, caracterizada por uma política estratégica de natureza essencialmente geopolítica, busca a recuperação do tempo e do espaço perdido, por meio da diplomacia, dissuasão e ação militar, contrastando duramente com os EUA. Ainda, destaca-se o esforço russo de aproximação econômica com a China. A China apresentou-se com notória disposição para arranjos de cooperação comercial, aumentando a sua influência política em mais de uma dezena de países da África e da América Latina. Por exemplo, a aproximação entre Brasil e China representa um mercado consumidor para os produtos brasileiros muito maior que o americano" (p. 46)

Inevitável questionar como, independentemente do grau de parentesco, o atual ministro da Defesa parece ter entendido tal brilhante análise, que, em última instância, expõe as implicações estratégico-militares de nossa dependência da China, inaugurada sob Lula e mantida por Bolsonaro ainda que sob vestes sinofóbicas.

Continuarás rei, Bolsonaro? Isso depende de para onde vão olhar aqueles que se arrogam o papel de poder moderador no Brasil. Entre o iliberalismo sino-russo e a imperfeita democracia americana, eu fico com a última. E você?

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.