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Cristina Tardáguila

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Quem curte o 'estilo Luana Araújo' de combate às 'fake news'?

A médica infectologista Luana Araújo durante depoimento na CPI da Covid, no Senado - Jefferson Rudy/Jefferson Rudy/Ag?ncia Senado
A médica infectologista Luana Araújo durante depoimento na CPI da Covid, no Senado Imagem: Jefferson Rudy/Jefferson Rudy/Ag?ncia Senado

Colunista do UOL

03/06/2021 04h00

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O depoimento dado pela infectologista Luana Araújo à CPI da Pandemia na última quarta-feira (2) não foi apenas um reluzente espetáculo da ciência frente ao perigoso curandeirismo que tomou conta do Brasil. Foi, sobretudo, prova de que é possível combater a desinformação pandêmica com tranquilidade, educação e - é claro - técnica. O resultado tende a ser avassalador.

Quem luta contra as notícias falsas de forma profissional sabe - e costuma repetir - que o confronto direto com aqueles que disseminam falsidades (sobretudo os que o fazem por falta de conhecimento) não leva a lugar nenhum.

O método mais eficiente para contornar um boato passa necessariamente por três pontos: produzir uma comunicação simples e direta (seja em formato de texto, vídeo ou áudio), ser absolutamente transparente sobre as fontes de informação utilizadas e estar seguro sobre a reputação delas. Sem isso, a conversa vira uma guerra de narrativas em que indivíduos duelam apenas para ver quem fala mais alto.

Durante o dia em que passou no Senado, no entanto, a infectologista que poderia ter sido secretária de enfrentamento à Covid dentro do Ministério da Saúde mostrou que também entende de comunicação. Em ao menos três oportunidades, acertou em cheio na forma de combater a desinformação. Araújo aplicou metáforas visuais extremamente ilustrativas, apontou distorções estatísticas com um linguajar simples e ainda pediu reflexão sobre a reputação das fontes utilizadas pelos senadores.

A metáfora do micro-ondas

Ainda na parte da manhã, ao fazer uma defesa do ineficaz "kit covid", o senador Marcos Rogério (DEM-RO) sugeriu que algumas das drogas contidas na lista disseminada por um grupo de médicos e alguns órgãos do poder público teriam tido efeito em experimentos realizados com o novo coronavirus in vitro.

Araújo então tomou a palavra e, em tom didático, expôs a fragilidade dessa evidência. Como se caminhasse de mãos dadas com a audiência que a observava, afirmou, sem despregar os olhos do senador, o seguinte:

"Quando a gente vai transferir essa potência antiviral in vitro para a complexidade dos organismos multicelulares e organizados, a gente tem menos de 10% de sucesso nessa transferência. Então, a frustração desse desenvolvimento é sempre muito grande. A gente tem uma esperança muito grande aqui e que nem sempre, ou quase nunca, se reflete no funcionamento real, no organismo humano por exemplo. Está bem?", questionou Araújo em tom amistoso, antes de seguir para um arremate brilhante.

"Se eu pegar uma placa, uma cultura viral, e botar no micro-ondas, senador, os vírus vão morrer. Mas não é por isso que eu vou pedir para o paciente entrar no forno duas vezes por dia. O senhor entende? Essa diferença precisa ficar clara para as pessoas que estão em casa".

E, sem dúvida, ficou.

Estatísticas distorcidas

Logo em seguida, Araújo foi interpelada pelo senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com sintomas leves e moderados de Covid-19.

Heinze disse que "no mundo inteiro" havia "resultados extremamente positivos" para a aplicação dessas drogas no formato off-label (fora do prescrito em bula) e quis embasar sua afirmação lançando mão de listas e números:

"A China usa (esses remédios contra a Covid-19). A Índia usa. Vinte e oito países usam esse tratamento".

Ao que Araújo retrucou, sem jamais elevar o tom da voz:

"São mais de 200 países (no mundo), senador".

Mas Heinze continuou:

"Bom, eu estou falando que 28 usam".

E Araújo voltou à carga, para encerrar sua fala de forma simples:

"É. E os outros não usam".

A infectologista provava ali que é possível colocar informações numéricas em perspectiva. Com poucas palavras, fez com que a comunidade refletisse sobre a manipulação estatística de forma produtiva. Outra boa lição de alfabetização midiática.

Uma reflexão sobre a fonte

As perguntas de Heinze continuaram, e o senador decidiu então elencar os cientistas que costuma acompanhar para obter informações sobre o uso de fármacos frente à Covid-19. A lista que compartilhou tinha pelo menos cinco nomes. Eram, segundo o parlamentar, cientistas que "recomendam o tratamento precoce".

"(O francês) Didier Raoult, inclusive, colocou nas suas redes (essas recomendações) e continua trabalhando (nesse assunto)", destacou o parlamentar.

Araújo então fez o que todo fact-checker faria. Questionou, com paciência e sem qualquer grau de ironia, sobre a reputação daquela fonte:

"Eu, primeiro, gostaria de perguntar ao senhor se o senhor já ouviu falar num prêmio chamado Rusty Razor, que o Dr. Didier Raoult ganhou ano passado?"

Heinze disse que não, e Araújo retomou a palavra sugerindo que ele fizesse "uma checagem nesse sentido".

Se seguir a recomendação da infectologista, o senador descobrirá que sua fonte de informação médica tem sido alvo de chacota mundial. O "prêmio" Rusty Razor foi criado pela revista britânica "The Skeptic" e é dado ao maior promotor da pseudociência no mundo. Raoult levou o galardão na última edição.

Cristina Tardáguila é fundadora da Agência Lupa e também escreve sobre fact-checking e desinfomação para Univision (EUA) e Fundación Gabo (Colômbia)