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OPINIÃO

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Se queres a paz, prepara-te para a paz

Escultura de arma com um nó, feita por Carl Fredrik Reuterswärd, relembra a paz em frente às Nações Unidas, nos EUA - Reprodução
Escultura de arma com um nó, feita por Carl Fredrik Reuterswärd, relembra a paz em frente às Nações Unidas, nos EUA Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

11/03/2021 04h00

Ana Penido e Suzeley Kalil*

É conhecido o provérbio romano "Se vis pacem, para bellum". A ideia nele embutida foi apropriada pelas Forças Armadas de vários lugares e também pela indústria, como a DMW alemã, que batizou sua pistola de Parabellum.

Simplificadamente, a expressão é interpretada como a afirmação de que, para garantir a paz, é necessário se basear no acúmulo da força armada.

A intenção aqui não é discutir as relações internacionais desde uma perspectiva do conflito ou da guerra. Retomamos a expressão para pensar o processo de militarização em curso no Brasil, que contamina todas as áreas do Estado, incluindo a política externa.

A larga participação dos fardados na política implicou um sistema político militarizado, o que vem sendo ampliado e aprofundado com o governo Bolsonaro. Entendemos que a militarização do Estado ocorre em ao menos cinco dimensões.

A primeira, e mais visível, é a presença física intensiva das forças de segurança (Forças Armadas, polícias civis e militares etc.) em espaços civis por definição.

Uma segunda dimensão é a ocupação de cargos no sistema político, sejam eles de forma eletiva ou por indicação. Esta presença cria uma correia na qual os interesses militares são transmitidos para todo o sistema político.

Uma terceira forma de militarização do sistema político é transpor doutrinas formuladas pelos militares para outros ambientes, por meio de políticas governamentais, adotando, por exemplo, a leitura de amigo x inimigo, a cultura do sigilo e da obediência cega etc.

Uma quarta maneira é transferir valores castrenses para a administração, impondo um determinado ethos, por exemplo, baseado na hierarquia, na disciplina e em valores morais próprios das Forças Armadas, por excelência conservadoras.

Uma quinta dimensão é a de militarizar todo e qualquer problema, tomando as forças de segurança como o meio para a resolução de toda natureza de desafio ao Estado.

Por fim, militarizar tem ainda mais um aspecto, que é alicerce para as demais dimensões, que é a manutenção da autonomia e de prerrogativas nas Constituições.

Destarte, no Brasil hodierno ocorre um processo de militarização do Estado, que impacta sua política externa. E essa militarização penetra e impregna todas as esferas da cidadania: política, econômica, social e cultural.

O gasto militar mundial atual gira em torno de 180 vezes acima do orçamento anual da Organização das Nações Unidas, o que já deixa claro as prioridades mundiais.

Além da manutenção da indústria de defesa e das Forças Armadas profissionais, a militarização econômica ocorre quando grandes empresas (públicas ou privadas) e até mesmo setores econômicos completos ficam nas mãos de militares.

No Brasil atual, os militares controlam 30% das empresas públicas, sendo o episódio da Petrobras apenas o mais recente.

A militarização econômica impacta o comércio exterior e subordina a área produtiva e as relações com os trabalhadores à dinâmica da segurança nacional.

Ademais, vive-se um processo de militarização da sociedade. Combinada com o elevado protagonismo militar em diferentes esferas já pontuado, a militarização da sociedade é a promoção de valores, atitudes e marcos identitários militares na cultura e nos costumes, como a centralização de autoridade, a hierarquização, a xenofobia justificada pelo cultivo de símbolos pátrios, a agressividade, a lealdade aos pares, entre outros.

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) aponta que, uma vez que a guerra invade a mente das pessoas, para construir a paz, é preciso partir também da mente das pessoas.

"A mente é militarizada de muitas formas. A educação e os valores militares formam parte do nosso dia a dia, e são promovidos de forma consciente e inconsciente por estruturas militares sob a conivência dos governos" (Rufanges, 2016, p.7).

Para verificar este fenômeno no Brasil, selecionamos quatro dimensões. A primeira é a naturalização da violência armada como um mecanismo para a resolução de conflitos, num crescente belicismo.

Essa naturalização tem impactos externos, quando alternativas que envolvem o emprego da força têm maior propensão de uso, contando com respaldo popular; e tem impactos domésticos, pois quando as forças de segurança são questionadas, podem responder repressivamente, identificando compatriotas como inimigos.

O belicismo também impacta nas diferentes formas de violência como, por exemplo, a violência de homens contra mulheres, que se torna mais letal.

Essa é a segunda reflexão que a militarização da sociedade impõe: a do reforço ao patriarcado —seria necessário criar machos-alfa capazes do emprego da violência, inclusive nas suas relações afetivas, com mulheres ou outros homens. Essa necessidade impõe-se inclusive para mulheres mães ou àquelas que se proponham a ocupar espaços historicamente masculinos.

Uma sociedade militarizada tende a apoiar medidas contra a agenda de direitos humanos internacional, como aquelas pela inclusão de gênero e raça.

A linguagem também é instrumento de militarização, expressão da nossa educação e cultura. Não se trata apenas das grandes marchas militares, ou rememoração de datas e personagens simbólicos.

A militarização ocorre pela literatura, moda, cinema, jogos bélicos, etc.. Ela acontece no cotidiano e na coloquialidade, como a adoção da expressão "guerra contra o vírus" explicitou.

É por meio da linguagem que se constrói o consentimento social favorável à militarização, pois ela serve como veículo de propaganda.

Em um mundo com tanta informação disponível e com o predomínio das redes sociais, podemos ser facilmente manipulados pelos centros de poder, o que alguns chamam de guerra híbrida.

Por fim, a quarta dimensão relevante para pensar a militarização na sociedade é a do dissenso. As estruturas militares geram em seu seio identidades unificadas e totalizantes, sem espaço para a divergência (que é inclusive castigada), e pautadas pela delimitação do outro como inimigo para justificar-se a si mesmas. Num ambiente internacional hierarquizado e multipolar, já deveríamos ter superado o eterno "dilema do prisioneiro" e ter aprendido a cooperar.

Para realizar a agenda proposta pelo Programa Renascença necessita-se desmilitarizar o Estado, a economia e a sociedade brasileira. A guerra não é algo inerente ao ser humano.

O processo de militarização faz com que acreditemos que a melhor forma lidar com um problema, seja internacional ou doméstico, é com o emprego de Forças Armadas. Porém, os gastos com a preparação para a guerra não são a maneira mais eficiente de gerenciar recursos públicos, e nem mesmo de conseguir mais segurança.

Desmilitarizar é muito mais que o retorno dos militares aos quartéis. Trata-se de um processo de civilianização do Estado e da sociedade, o que exigirá medidas principalmente no âmbito da educação e propaganda, para que a violência armada não seja uma alternativa na resolução de conflitos. Enfim, se queremos a paz, é preciso prepararmo-nos para ela, engajando-nos firmemente em sua construção.

* Ana Penido e Suzeley Kalil são pesquisadoras do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional - Gedes