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Brasil exposto na OEA: indígenas e direitos humanos em Mato Grosso do Sul

Dona Miguela (esq.), 92 anos, Anciâ Kaiowá, na terra indígena Guyraroka, em MS, mostrando os túmulos de parentes à Antonia Urrejola, comissária da CIDH - Christian Braga/Farpa/CIDH
Dona Miguela (esq.), 92 anos, Anciâ Kaiowá, na terra indígena Guyraroka, em MS, mostrando os túmulos de parentes à Antonia Urrejola, comissária da CIDH Imagem: Christian Braga/Farpa/CIDH

Colunista do UOL*

09/04/2021 04h00

Precisamos falar sobre o Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos

23 anos: este foi o intervalo entre a primeira e a mais recente visita oficial da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), da OEA (Organização dos Estados Americanos), ao Brasil. Em novembro de 2018, a comitiva da CIDH esteve em solo brasileiro para verificar in loco a situação dos direitos humanos no nosso país. O Brasil vivia o fim do cambaleante governo Temer e o luto, ao menos de quem zela pelos direitos humanos, pela então recente vitória do atual presidente. O resultado da visita da CIDH se materializou em relatório publicado recentemente, em 5 de março deste ano. Uma versão prévia foi enviada pela CIDH ao governo brasileiro em outubro do ano passado, que respondeu dois meses depois com informações, as quais, quando pertinentes aos olhos dos integrantes da CIDH, foram incorporadas ao relatório.

Trata-se de longo documento de mais de 200 páginas no qual a Comissão traça diagnóstico abrangente sobre a situação dos direitos humanos no Brasil e, ao final, encaminha uma série de recomendações. Tendo em vista a extensão continental do país, mas também a complexidade e variedade de violações sistemáticas, a CIDH optou por focar certos temas e certos grupos ligados à questão da discriminação e desigualdades históricas e estruturais brasileiras. O relatório, portanto, é bastante rico e detalhado.

Entretanto, não só em razão da distância temporal entre a visita (novembro de 2018) e a publicação do relatório (março de 2021), mas também pelo fato de o atual governo paradoxalmente "rotinizar" a opinião pública com suas reiteradas posições e práticas anti-direitos humanos, inclusive em âmbito internacional, o importante relatório da CIDH parece não ter alcançado - pelo menos não ainda - a visibilidade merecida. As possibilidades de seu uso estratégico estão justamente na sua riqueza de detalhes. Na temática indígena, por exemplo, isso é evidente.

Além de dedicar merecido espaço a vários dos problemas vivenciados pelos povos indígenas (inclusive os isolados) da região amazônica, a qual tende sempre a chamar mais a atenção dos olhos internacionais, o relatório se debruça com cuidado também sobre a realidade dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul. Vale dizer, aliás, que a CIDH se dividiu em seis grupos durante a estada no Brasil e optou por visitar apenas oito estados, entre eles o MS, justamente a região do município de Dourados, epicentro de um padrão sistemático de violações aos povos Guarani, Kaiowá e Terena.

De modo geral, os problemas vivenciados pelos povos indígenas de MS possuem semelhanças com as violações infelizmente sofridas por povos de outras regiões do Brasil, pois se relacionam com fenômenos amplos não negligenciados pela CIDH, tais como: invasão de terras indígenas; dificuldade para titulação e proteção de terras; demora injustificada na demarcação de terras; ausência de proteção do Estado; agendas parlamentares anti-indigenistas; enfraquecimento da FUNAI; erosão das políticas ambientais; precariedade das políticas de saúde; desrespeito ao consentimento, prévio, livre e informado; escassas reparações em matéria de direito a memória e verdade; e a retrógrada tese do chamado marco temporal.

Como a CIDH esteve in loco no MS, em seu relatório há diversos momentos nos quais conecta esses problemas estruturais às graves realidades vividas pelos povos indígenas da região de Dourados-MS. Ao tratar da tese do Marco Temporal, por exemplo, o relatório explicita que os povos Terena, Guarani e Kaiowá foram prejudicados na medida em que tiveram processos de demarcação cancelados: a terra indígena de Limão Verde/Buritim, no caso dos Terena, e Guyraroká, no caso dos Guarani e Kaiowá, agora em análise em julgamento virtual pelo STF.

Tendo passado pela região, a CIDH pôde evidenciar a grave condição humanitária dos povos indígenas de MS decorrente do desrespeito sistemático aos seus direitos territoriais. Trata-se da segunda maior população indígena no país, mas 80% dela vive em menos de 27 mil hectares. A situação da Reserva de Dourados é de superpopulação e confinamento, o que se relaciona com altas taxas de homicídio e suicídio. As comunidades e lideranças que tentam resistir a esse processo são costumeiramente alvos de ataques. Infelizmente, isso não é, claro, uma exclusividade de MS, mas a realidade nessa região é tão gritante que a CIDH, ao tratar desse problema estrutural no seu relatório, justamente exemplifica com o caso dos Guarani e Kaiowá.

A CIDH também esteve presente em Guyraroka, terra indígena cujo processo de demarcação foi cancelado por força da estapafúrdia tese do Marco Temporal. A comunidade que ali reside vive em condições absolutamente precárias e insalubres. O território atualmente ocupado ali pelos Guarani e Kaiowá corresponde apenas a 5% daquele então mapeado pelo relatório de identificação e demarcação de 2004. Além de todas as precariedades materiais observadas pela CIDH, seu relatório não negligencia a situação de constante stress que assola uma comunidade que vive rotineiramente sendo ameaçada e que teme ser despejada a qualquer momento.

A comitiva da CIDH também passou pelo território indígena Dourados-Amabaipeguá, palco de ataques frequentes por parte de milícias armadas e cenário do chamado Massacre de Caarapó. Em abril de 2017, em uma operação chamada de Caarapó I, uma ação policial foi realizada com mais de 200 homens e um helicóptero, desrespeitando completamente as normas internacionais e interamericanas de direitos humanos. O indígena Clodiodi de Souza foi morto, e mais seis indígenas deixados feridos, inclusive um menino de 12 anos. O caso é tão alarmante que a CIDH o incluiu nominalmente nas recomendações ao Estado brasileiro acerca da necessidade de investigar, sancionar e reparar as ameaças, ataques e violência contra membros de povos indígenas, causados tanto por agentes estatais quanto privados.

A comitiva da CIDH ainda se debruçou sobre o tema da remoção de crianças indígenas de suas respectivas famílias. Durante a visita, esteve no Centro Educacional Maria Ariane (CEMA), em Caarapó-MS. Naquele momento, segundo o relatório da Comissão, 17 das 19 crianças que lá estavam abrigadas eram indígenas e, na cidade de Dourados, naquele mesmo momento, havia 34 crianças indígenas em abrigos. No relatório, a CIDH não se furtou a relacionar tal problemática com elementos estruturais causadores da situação, ou seja, carências profundas, violências e violação do direito à terra.

O relatório ainda menciona casos de trabalhadores Terena resgatados em condições análogas à escravidão, e denuncia, ecoando conclusões de audiência pública realizada pelo Ministério Público Federal de MS, padrões sistemáticos de violência obstétrica impostos a mulheres indígenas e negras.

A realização de visita oficial de um órgão internacional de direitos humanos, como a que a CIDH fez ao Brasil em 2018, não é algo trivial. Tanto a visita em si quanto os produtos dela decorrentes, como é o caso do relatório divulgado no mês passado pela CIDH, têm potencial de geração de impactos positivos para a situação daqueles que sofrem violações sistemáticas, como os povos indígenas de MS. Mas esses impactos passam a ter alguma chance de efetividade somente se agentes domésticos empunham os registros feitos pelo órgão internacional e passam a integrá-los em suas estratégias, sejam elas políticas ou jurídicas, ainda mais considerando as políticas e posições anti-indígenas - internas e externas - do atual governo federal. Nesse sentido, é imprescindível que não só entes da sociedade civil e outros atores que se enfileiram ao lado dos movimentos indígenas, mas também que instituições como Judiciário, Ministério Público, Defensoria e OAB conheçam e se valham dos alertas e recomendações feitas pela CIDH em seu relatório recém-divulgado. Só assim as normas internacionais ganham vida e "desnormalizam" a morte.

*Matheus de Carvalho Hernandez e Bruno Boti Bernardi - Professores do curso de Relações Internacionais e do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados.