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Qual o sentido de comemorarmos o Dia da Consciência Negra?

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consciencia negra Imagem: iStock

Colunista do UOL

20/11/2021 08h52

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Paulo Neves *

Qual o sentido de comemorarmos o Dia da Consciência Negra? Esta é mais que uma pergunta retórica. É uma indagação sobre o lugar que o racismo ocupa em nossa sociedade. Se o dia 20 de novembro se tornou um símbolo da mobilização e da luta antirracista entre nós, esse é um bom momento para refletirmos sobre as desigualdades raciais no Brasil. Partindo da constatação de que o preconceito racial ainda deixa marcas indeléveis em nossas instituições e relações cotidianas, podemos ainda nos perguntar: em que ponto estamos da luta antirracista nas Terras Brasilis?

A ideia de se comemorar a Consciência Negra em 20 de novembro surge na década de 1970, no seio do movimento negro gaúcho. A escolha se deu por ser este o dia provável da morte de Zumbi, último e mais importante líder de Palmares. Considerado o maior quilombo da história do país, entre fins do século XVI e a segunda metade do século XVII, os escravos revoltados puseram o sistema colonial em questão e infernizaram a vida dos fazendeiros do Nordeste açucareiro. Ao elegerem essa data como símbolo da resistência negra, os militantes pretendiam se contrapor às tradicionais comemorações do 13 de maio, dia da assinatura da lei áurea pela Princesa Isabel, construindo não somente novas narrativas sobre a história do país, mas sobretudo produzindo para nós próprios uma versão em que nosso protagonismo era destacado Desejava-se substituir a imagem de uma abolição relativamente pacífica e outorgada pelas elites da época, por uma visão de que a abolição fora o fruto de uma luta secular da população negra, cujo símbolo maior eram justamente as lutas quilombolas e, em especial, a resistência de Palmares.

Deixo aos historiadores a preocupação de saber qual dessas duas interpretações do passado mais se aproxima da verdade histórica, se é que isso é possível. Como nos lembra Walter Benjamin, em um belo texto sobre o conceito da história, a revisitação do passado pelos que buscam a transformação do presente deve despertar "as centelhas da esperança" contra a visão dos unívoca dos vencedores, os quais acreditam que a "verdadeira" história corresponde à sua interpretação dos fatos. Por essa razão, deve-se escovar "a história a contrapelo" para evitarmos o conformismo de uma história oficial que conta apenas a versão das elites. Nessa direção, o 20 de novembro tem significado um potente mecanismo para se repensar a experiência dos negros e negras, alterando a imagem da escravidão como de mera passividade dessa população, trazendo o protagonismo negro para o centro da história do país, em uma narrativa que nos contempla como sujeitos ativos.

Era esse espírito que estava por trás da celebração de Zumbi e de Palmares. Mais que se preocupar com a veracidade histórica do que conhecemos sobre eles, pretendia-se mudar os termos sobre como o racismo era visto na sociedade brasileira dos anos 1970. Nesse momento, a ditadura militar promovia o mito da democracia racial como uma propaganda para usos internos e externos: essa era a versão de Brasil ensinada nas escolas e nos livros didáticos, tendo se tornado ainda uma das pedras angulares da diplomacia brasileira pelo mundo.

A tentativa de retorno a essa visão edulcorada do racismo por personagens histriônicos à frente de órgãos responsáveis pelas políticas culturais para a população negra, vai além de laivos autoritários e de saudosismos da ditadura militar. As performances públicas de representantes da Fundação Palmares visam deslegitimar a luta negra antirracista, bem como suas demandas por políticas compensatórias. Contudo, a julgar pelo apoio público e político às comemorações pelo 20 de novembro (a data é feriado em diversos estados e municípios) o antirracismo veio para ficar no Brasil contemporâneo.

O que nos remete à segunda pergunta no início deste artigo: como avaliar o caminho percorrido até aqui? A metáfora do copo meio cheio, meio vazio, apesar de batida, poderia ser um bom começo. De fato, desde os anos 70, muita água correu debaixo da ponte do racismo nosso de cada dia. Poucos ainda sustentam que não há racismo no país e que vivemos em um Paraíso Tropical, onde a cor da pele não faz nenhuma diferença. Aqueles que o fazem têm mais interesses políticos que compromissos com a realidade que nos cerca. Da mesma forma, a presença de negros em vários espaços sociais tornou-se mais visível: das telenovelas e telejornais (embora ainda de forma minoritária) às universidades públicas, a presença de negros é cada vez mais evidente e, por vezes, valorizada. Assim, por exemplo, uma pesquisa recente realizada pela ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) mostra que os negros (leia-se pretos e pardos) seriam pouco mais da metade dos alunos das universidades federais.

Apesar disso, o lado meio vazio e com gosto amargo do copo de nossa realidade nacional continua nos marcando como um país extremamente desigual e racista: as estatísticas estão aí para nos mostrar essa dura realidade. Apenas para ficarmos no âmbito de uma das faces mais dramáticas dessas desigualdades, de todos os assassinatos ocorridos no país em 2019, 77% foram de pessoas negras (pretas e pardas), segundo dados publicados pelo Atlas da Violência. Se olharmos mais de perto, veremos também que a ação policial é muito mais letal com os negros que com os não negros; segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, oito em cada dez pessoas mortas pela polícia eram negras, ainda em 2019. Essas, dentre outras, são consequências de desigualdades raciais que penam em diminuir. O mesmo poderia ser dito em relação ao mercado de trabalho e ao alto nível de pobreza da população de cor. Da mesma forma, o cataclisma provocado pelo vírus COVID 19 escancarou de forma dramática o nível do racismo estrutural entre nós: segundo diversas pesquisas em curso, os negros morreram relativamente mais que os brancos em razão da pandemia, perderam mais facilmente seus empregos e estão em maior número em situação de insegurança alimentar.

Revisitando nossas indagações iniciais, constata-se que ainda temos muito a fazer para tornar o Brasil um país mais justo e menos racista. Razão pela qual o 20 de novembro continua sendo uma data emblemática para nosso futuro como nação. Oxalá a energia acumulada nessas últimas décadas de comemorações do Dia da Consciência Negra nos ajude a encher o copo meio vazio de nossa democracia.

Em tempo, a revisão da chamada lei de cotas, responsável por alguns dos avanços que tivemos desde os anos 2000, dar-se-á em 2022. Essa será uma boa oportunidade para mensurar até que ponto nossa sociedade está realmente comprometida com a redução das desigualdades raciais e sociais, ampliando e consolidando as políticas afirmativas que tem tido resultados tão alvissareiros.

* Paulo Neves é professor titular na UFABC na graduação em Políticas Públicas e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais. Possui graduação em Ciências Sociais pela UFBA, mestrado em Sociologia e Ciências Humanas - Universite Lumiere Lyon 2 e doutorado em Sociologia e Ciências Sociais - Universite Lumiere Lyon 2.