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O Enem venceu, mas ainda está em risco sob Bolsonaro

Enem 2021 já é considerado o mais excludente e desafiador para estudantes pobres e vulneráveis - Gabriel Moreira/UOL
Enem 2021 já é considerado o mais excludente e desafiador para estudantes pobres e vulneráveis Imagem: Gabriel Moreira/UOL

Colunista do UOL

28/11/2021 04h00

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Daniel Cara*

Desde primeiro de janeiro de 2019, quando Jair Messias Bolsonaro começou seu mandato presidencial, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) está sob risco.

Antes disso, logo após ter sido eleito, em nove de novembro de 2018, Jair Bolsonaro já fazia ameaças ao exame, dando a linha do que seria praxe em seu governo: a tentativa de intervir na prova.

No Enem daquele ano, uma das questões da prova abordou o pajubá: um conjunto de expressões de origem iorubá utilizado por travestis e que ganhou a comunidade LGBTQIA+. Na oportunidade, em live no Facebook, Bolsonaro afirmou: "Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão desta forma ano que vem, porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes. Não vai ter isso daí".

Até o momento, para frustração do ex-capitão e de seus seguidores, o presidente não foi capaz de efetivar sua ameaça. Basicamente, isso ocorreu porque há um conjunto de procedimentos e princípios para a elaboração da prova, com forte aparato técnico e científico, elaborado, gerido e protegido por servidores públicos competentes e comprometidos com o Enem, lotados no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).

Parte significativa dos procedimentos para elaboração, logística e segurança do Enem foi formulada após uma experiência traumática: o roubo da prova em 2009, justamente quando o exame vivia uma virada revolucionária, tornando-se a principal porta de entrada para a educação superior no Brasil.

Foi a crise decorrente do roubo da prova que estruturou um modelo que torna o Enem seguro, além de ser o melhor exame vestibular do Brasil em termos de conteúdo.

Contudo, após três anos de governo Bolsonaro, é possível aprender sobre suas estratégias de destruição. Se o Palácio do Planalto não consegue vencer as instituições e as políticas públicas por nocaute, procura vencê-las por pontos. E nesse último caso, a principal tática é esvaziá-las. Esse é o caso do Enem.

No entanto, antes de tratar do esvaziamento do Enem propriamente dito, é preciso explicar o motivo do exame incomodar tanto o bolsonarismo. Em linhas gerais, são dois os motivos. O primeiro é o ressentimento com a democratização da Universidade. O segundo é o conteúdo científico e pedagógico do exame.

Em relação à democratização da Universidade, o principal vocalizador do ressentimento bolsonarista é Paulo Guedes, que já assumiu contrariedade com o fato de que o filho do porteiro ingressou na educação superior.

Sobre o incômodo com o conteúdo científico e pedagógico do Enem, dias atrás (24/nov), o próprio Bolsonaro revelou sua compreensão sobre como deve ser o ensino e o exame.

Em uma solenidade no Palácio do Planalto sobre escolas militarizadas, afirmou: "se eu pudesse interferir, pode ter certeza que a prova estaria marcada para sempre com questões objetivas de fato, não questões ideológicas como ainda vimos. Saiu na imprensa que eu queria questão de ditadura militar. Não vou discutir sobre ditadura militar, mas colocaria, sim, uma questão se pudesse: 'Quem foi o primeiro general que assumiu 1964?' Foi Castelo Branco. 'Em que data?' Eu duvido que a imprensa acertaria. Foi 31 de março, 1º de abril, 2 de abril ou 15 de abril? Eu acho que o pessoal da imprensa ia errar, acho não, tenho certeza. O que eu quero com isso não é discutir o período militar, é começar a história do zero, foi dia 15."

Como pôde ser visto, para Bolsonaro aprender é decorar, algo mais do que ultrapassado. E ensino de história resume-se a apologia factual da ditadura militar de 1964, por meio do reconhecimento de datas, sem qualquer pensamento crítico e reflexão sobre o processo histórico. Ou seja, para o bolsonarismo, educação é propagação e proselitismo político de seus valores e programas ultrarreacionários, o que - obviamente - contraria o conhecimento científico.

Diante da disposição do governo Bolsonaro de intervir no exame e esvaziá-lo, os servidores decidiram resistir. Como ato mais corajoso 37 deles posicionados em cargos de confiança pediram demissão - sem, contudo, abandonar suas obrigações. Mais do que isso, denunciaram uma série de acusações de assédio moral e de enfrentamento técnico e administrativo.

Contra o governo e com apoio da sociedade civil - em especial da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Educafro e Ubes, além da Defensoria Pública da União -, os servidores do Inep venceram. Em 21 de novembro garantiram uma boa prova de Ciências Humanas, redação, linguagens e códigos. Hoje, 28 de novembro, deve ocorrer o mesmo.

Contudo, permanece a tática bolsonarista de esvaziamento. O dado mais visível do fenômeno é a queda no número de inscritos, que cai desde 2017. O Enem de 2021 teve 52% a menos de inscritos entre pretos e pardos. Isso revela que os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro não foram capazes de estimular os jovens a ingressar no ensino superior, produzindo graves consequências às juventudes e ao Brasil.

Sobre a obsessão bolsonarista de intervenção na prova, é preciso alertar o país que, segundo os servidores do Inep, o Banco Nacional de Itens está praticamente no fim, pois não foi alimentado durante os três anos do governo Bolsonaro.

Além do risco de questões serem produzidas sob jugo de Bolsonaro, é preciso lembrar que 2022 é ano eleitoral. E será preciso formular questões e fazer o pré-teste no ano do exame, com as duas provas ocorrendo após as eleições gerais de outubro. Ou seja, a manutenção do Enem depende de uma decisão da sociedade.

O melhor caminho de preservação do Enem é defender os servidores públicos do Inep, como fez a Ação Civil Pública apresentada conjuntamente pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Educafro e Ubes.

Uma prova do que digo é o sucesso dessa edição, frontalmente contra o governo. Até aqui, o sucesso é mérito dos servidores do Inep, além da inegável competência logística dos Correios, responsável por distribuir a prova com celeridade.

Não à toa, os servidores estão ameaçados pela Reforma Administrativa que tramita na Câmara dos Deputados, na forma da Proposta de Emenda à Constituição 32 (PEC 32). Já os Correios, embora seja uma empresa lucrativa e com competência logística comprovada, pode ser privatizada a preço irrisório devido à falta patriotismo de Paulo Guedes e de Jair Bolsonaro.

* Daniel Cara é professor da Faculdade de Educação da USP e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Em 2015 foi laureado com o Prêmio Darcy Ribeiro, entregue pela Câmara dos Deputados em nome do Congresso Nacional.