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Entre Retrocessos e possibilidades: o final de 2021 e a esperança em 2022

Criança, pobre, pobreza, fome - iStock
Criança, pobre, pobreza, fome Imagem: iStock

Colunista do UOL

30/12/2021 05h00

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Luiz Franco e Martha Gaudêncio da Silva*

O ano de 2021 se encerra sendo mais um ano da pandemia, no qual chegamos ao infeliz número de mais de seiscentos mil mortos devido ao COVID-19. Seu início foi marcado pela esperança de que vacinas seriam rapidamente produzidas e a população imunizada. Entretanto, começou com divergências políticas que atrasaram todo o processo de vacinação e com escândalos a respeito da demora da chegada dos imunizantes no país.

Para além do contexto pandêmico, o Brasil tem vivido um processo de ausência de políticas, como exemplifica a volta do país ao mapa da fome. Não são necessárias muitas informações para saber que há pessoas sofrendo com a insegurança alimentar. Casos como o de famílias que chegaram a procurar por alimentos em um caminhão de lixo na cidade de Fortaleza se tornaram símbolos e exemplo da inoperância do Estado em promover políticas públicas que garantam as necessidades básicas da população e sua sobrevivência digna em um período de crises e de pandemia.

Segundo o último Relatório do Inquérito da Fome, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - Rede PENSSAN, no ano de 2020 mais de 116 milhões de pessoas viviam em estado de insegurança alimentar, enquanto mais de 19 milhões de pessoas já estavam passando fome no país. Com a ausência da efetividade de políticas públicas, estes números passaram por um processo de aumento gradual, principalmente nas regiões periféricas. Reflexos da não continuidade de ações como o programa "Fome Zero", os cortes de valores e a não continuidade do auxílio emergencial neste momento tem contribuído para este aumento, deixando assim muitas famílias em estado de vulnerabilidade cada vez maior.

A falta de assistência no que tange à seguridade social - saúde pública, assistência social e previdência -, dentre outras políticas públicas, corroboram com a ausência de condições básicas de sobrevivência que perpassam do não acesso ao saneamento básico à impossibilidade de se vacinar em tempo durante uma pandemia mundial, tudo isso em um cenário de calamidade que desencadeou, nunca é demais enfatizar, em mais de 600 mil vidas ceifadas em decorrência da baixa capacidade em se lidar com a crise sanitária do país.

Dados do grupo Alerta (grupo de organizações da sociedade civil formado pela Anistia Internacional, CSDDH, Instituto Ethos, IDEC, INESC, Oxfam Brasil e SBPC) demonstrados em seu relatório Mortes evitáveis por Covid-19 no Brasil em junho de 2021, identificaram que o país, até março de 2021, poderia ter evitado 120 mil mortes se "medidas preventivas e políticas como distanciamento social e restrições às aglomerações, fechamento de escolas e do comércio tivessem sido adotadas de maneira ampla e adequada no Brasil". Em continuidade aos dados apresentados, o grupo indica como a lentidão do país e do sistema de saúde afetou nos cuidados de pacientes, o que se deu em decorrência de uma inoperância governamental, que teve a possibilidade de se preparar para receber uma pandemia mundial ainda em 2020 no início desta, mas a falta de ações refletiu nos meses seguintes e consequentemente no ano de 2021.

De fato, nesse momento, o país se encontra em uma posição distante no que tange a garantia de qualquer tipo de dignidade e direitos básicos e muito aquém do que foi um dia como exemplo mundial a ser seguido em diversas áreas e políticas.

A estes pontos acrescentam-se outros, como o cenário cada vez mais devastador no que tange à proteção ambiental, ainda sofrendo com os reflexos das grandes queimadas que ocorreram tanto no bioma do pantanal quanto da Amazônia, este último de forma acelerada e em contínuo aumento. Somente em abril de 2021, tivemos um número recorde de desmatamento na Amazônia, sendo esse o pior mês desde 2015 segundo a série histórica do Instituto de Pesquisas Espaciais - INPE. As queimadas além de impactarem diretamente na fauna e flora atingem também as populações tradicionais e povos indígenas que vivem em territórios próximos, como também, de forma indireta, impactam em ciclos bioquímicos como os das chuvas, causando crises hídricas em diversos lugares do país e gerando uma maior seca em outros.

Para além do desmatamento, neste ano, no Congresso Nacional, o debate em torno do PL - Projeto de Lei do licenciamento ambiental, que se iniciou em 2004, tramitou de maneira rápida e com pouca participação social na Câmara dos Deputados. Este novo PL, mesmo que necessário, traz consigo uma série de retrocessos que irão impactar diretamente milhares de vidas, ao mesmo tempo em que possui o poder de promover o desenvolvimento sustentável e um meio ambiente saudável para todas as pessoas. Dessa forma, o projeto, que agora se encontra no Senado Federal, ainda pode ser modificado e assim minimizar os impactos negativos que possam vir a ser gerados por ele. É necessário que instrumentos normativos como o licenciamento ambiental garantam a preservação ambiental, a dignidade humana e sejam capazes de colaborar para a criação e manutenção de políticas públicas que desenvolvam e protejam a todas as pessoas e ao meio ambiente.

Políticas públicas têm o poder de gerar transformações sociais, econômicas e ambientais, e, embora sejam influenciadas por uma série de atores no processo de agenda-setting, são, antes de tudo, escolhas. E a escolha de não se produzir políticas também é, por si só, uma política, que pretende não alcançar as camadas sociais que delas mais necessitam, que agem na manutenção de desigualdades, que geram o desmonte do que já fora consolidado e deixa cada vez mais às margens aqueles que sempre nelas estiveram.

O ano de 2021 foi marcado por um acentuamento das desigualdades sociais e ambientais, e também, de grandes perdas de vidas, ainda em decorrência das mortes pelo Covid-19. Apesar da inoperância e inação nas políticas públicas e do vírus atingirem todas as pessoas, estes atingem de forma histórica e cada vez mais acentuada populações e grupos que já estão historicamente em estado de vulnerabilidade, como a população negra, mulheres, e os residentes das periferias do país. Dados da Rede de Pesquisa solidária de setembro de 2021 indicaram que "Homens negros morrem mais por Covid-19 do que homens brancos independente da ocupação, tanto no topo quanto na base do mercado de trabalho e mulheres negras morrem mais do que todos os outros grupos (mulher branca, homens brancos e negros) na base do mercado de trabalho, independente da ocupação".

Ao identificar esses aspectos apresentados e o processo histórico pelo qual o país foi constituído, tem-se que tanto a sociedade como as políticas públicas no país ainda negligenciam as populações em estado de vulnerabilidade como a população negra. O racismo estrutural ainda se mantém vivo e constante em nossa sociedade, mesmo que, aos poucos, a população, através de ações dos movimentos negros, o venha reduzindo. Mesmo assim ainda surgem e ressurgem outras formas de racismo, como o ambiental que atinge e perpetua as mazelas sociais nas zonas periféricas urbanas e rurais de todo o país.

Outra forma de racismo ainda existente é o racismo institucional que se personifica desde a ausência de sensibilidade dos tomadores de decisões em abranger as singularidades e necessidades das pessoas negras no momento de criação e implementação de políticas públicas como também na hora de refletir a sociedade nos espaços institucionais. Dados do relatório Democracia Inacabada da Oxfam Brasil de 2021 indicam que dos 513 Deputados Federais eleitos no país em 2018 somente 126 eram negros ou indígenas, ou seja, 24,56% dos eleitos, enquanto dados do IBGE indicam que 54% da população brasileira é negra. Essa ausência de reflexão da composição e representação nos meios institucionais no país incidem diretamente de como políticas públicas irão abranger e proporcionar uma melhoria de vida para toda a população em si.

No atual contexto socioeconômico do país, que dispõe então de pessoas em situação de insegurança alimentar e de desemprego, que cresce cada vez mais, as eleições de 2022 passam a dispor de uma importância cada vez maior. É urgente a necessidade de um governo que escolha manter e melhorar políticas públicas já existentes e que se provaram eficazes e eficientes em algum momento da história do Brasil. Ademais, é necessário formar um governo que proponha novas políticas públicas visando gerar mudanças estruturais capazes de fortalecer a democracia retomando o posto do país de exemplo internacional de boas práticas, reduzindo as desigualdades que aumentaram nos últimos anos e sendo um local com possibilidades de desenvolvimento e inclusão ao conjunto de sua população com toda sua diversidade.

É um dever de uma sociedade que acredita que sua população não deva sofrer pelas desigualdades sociais ou por preconceitos se posicionar no próximo pleito eleitoral, construindo desde agora a importância do exercício da cidadania. Convém lembrar que nenhum presidente no Brasil governa sem o apoio do Congresso Nacional, e que a configuração das bancadas no Senado Federal e na Câmara dos Deputados é determinante para contribuir ou não com um projeto em prol do desenvolvimento nacional.

O próximo ano representa a possibilidade de nos mantermos no abismo atual ou de caminhar rumo à saída dele, para um projeto de país no qual os retrocessos existentes e as formas de discriminação sejam cada vez mais evitados, mitigados e denunciados. Para isso, uma ampla mobilização social em torno de candidatos e candidatas que defendam a democracia e um plano de desenvolvimento é mais do que necessária e importante para que tenhamos uma retomada estrutural rumo à prosperidade de nosso país, tão rico em diversas áreas mas que ainda carece de plenas oportunidades, garantia de direitos e políticas públicas que atendam a todos os seus membros.

*Luiz Franco é defensor de direitos humanos, bacharel em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC - UFABC e bacharelando em Políticas Públicas pela mesma universidade.

*Martha Gaudêncio da Silva é estudante de Políticas Públicas e de Ciências e Humanidades na Universidade Federal do ABC - UFABC. Atuou como Agente de Governo Aberto pela Prefeitura de São Paulo em 2021.