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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lado A, Lado B: a questão das tragédias cotidianas

Idoso, velho, mente, memória, lembrança, neurônio, cérebro - iStock
Idoso, velho, mente, memória, lembrança, neurônio, cérebro
Imagem: iStock

Colunista do UOL

17/02/2022 13h43

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Marcus Vinicius de Azevedo Braga*

Daniel Kahneman (1934-), psicólogo ganhador do Nobel de Economia (2002), juntamente com Amos Tversky (1937-1996), foram os percursores dos estudos que deram origem a área hoje chamada de economia comportamental. Coqueluche de eventos e de artigos de opinião, essas ideias trouxeram outras perspectivas sobre o processo decisório do ser humano, inclusive com efeitos nas políticas públicas, como na ideia de Nudge.

Na sua obra "Rápido e devagar: duas formas de pensar" (1), bestseller lançado em 2011, Daniel Kahneman se detém na análise dos processos de escolhas do indivíduo, tratando, entre outros temas, de dois sistemas que regem a mente humana e que de forma combinada ou conflituosa, carregam de vieses e distorções as percepções humanas.

O chamado Sistema 1 tem um caráter intuitivo, involuntário, de reação rápida e reflexa diante de possíveis ameaças, como uma herança de tempos mais selvagens da existência humana. O Sistema 2 envolve atividades mentais mais elaboradas, sendo mais lento, com cálculos complexos, exigindo sopesar alternativas e concentração.

Um modelo abstrato para entender o processo de tomada de decisões, mais racional, ou mais impulsivo, e que se ajusta a discussão das reações individuais e coletivas frente as tragédias cotidianas, que permeiam o noticiário, de enchentes a pedestres atropelados violentamente, que em tempos de avançada tecnologia de comunicações, permite que imagens, opiniões e choros circulem nas mentes e nas casas dos cidadãos, inspirando um sem-número de sentimentos e falas.

O sistema 1, nesse contexto, se relaciona com a voz que clama por justiça, que anseia pela prisão e punição exemplar dos responsáveis, a similitude de um revival do conceito de suplício (2) descrito por Michael Foucault, na qual se aplacavam os sentimentos de justiça pela espetacularização da aplicação de penas em praça pública, uma realidade que pode ter assumido nova roupagem com o fenômeno das redes sociais.

A percepção encharcada do sistema 1 busca encontrar os culpados e que esses sejam prontamente aprisionados, humilhados e punidos, se revoltando com mecanismos garantistas, como a audiência de custódia, e mobiliza a revolta popular em manifestações, algumas que resultam em atos igualmente violentos, sendo, por vezes, a tragédia cotidiana geradora um estopim de indignações sucessivas que se acumulam.

O sistema 1 se detém aos aspectos pontuais da culpabilização.

O sistema 2, diante das tragédias cotidianas, busca entender as causas, comparar o evento com outros similares em locais e épocas diversas, tentando compreender a soma de fatores aleatórios e falhas estruturais que desencadearam aquela situação, apresentando medidas que podem ser adotadas para prevenir outras ocorrências futuras.

As falas permeadas pelo Sistema 2 surgem na imprensa quando se discutem políticas públicas e seus respectivos programas, que falharam ou se fizeram ausentes diante daquela situação lamentável. Surge o orçamento executado, o impacto das decisões políticas, das agendas ignoradas e análises sobre leis e investimentos que se fariam necessários.

O sistema 2 se detém aos aspectos sistêmicos das políticas públicas e da sua gestão.

Muito claro identificar no debate público que se instala após esses eventos trágicos a composição dessas duas visões, metaforizadas pelo modelo de Daniel Kahneman, e que agitam o noticiário por um breve período, para se esvaírem aos poucos, ficando uma triste lembrança que logo é sobreposta por novas tragédias, esquecida a responsabilização, as políticas e tudo mais.

A miríade de problemas que cada sociedade carrega se faz visível nessas tragédias cotidianas, que deixam mensagens, um dever de casa, um alerta, que precisa transcender o momento e se materializar em ações concretas, na criação ou reformulação de: legislações, órgãos reguladores e avaliadores, instâncias de acompanhamento, compromissos eleitorais, relações entre entes da federação. Esse caminho da volta é árduo, trabalhoso, e nem sempre traz os resultados esperados. Mas, é necessário.

Faz-se necessário, em tempos nos quais a baixa confiança nas instituições é um fenômeno mundial (3), respeitar o luto da reação inicial diante das tragédias cotidianas, para avançar sobre as causas estruturais. Muitos avanços na história das sociedades se deram pela ação de vítimas e prejudicados que abraçaram causas que mobilizaram atores, e que reverteram em mudanças realmente substantivas.

Na confusão de sentimentos e de culpabilizações do sistema 1, é preciso resgatar casos similares, estudos, mecanismos de correção, para que ascenda na mesa do debate público as ações que são centrais naquele problema, sem desconsiderar a relevância das ações punitivas aos responsáveis. São duas dimensões do problema, Lado A e B de um mesmo disco, que por vezes está gasto de tanto ser executado.

Para isso, é preciso clareza nos diagnósticos dos problemas que deram origem a essas tragédias cotidianas. Aí reside a importância dos respeitados veículos de imprensa, nas matérias longas e profundas, hoje meio demodé. E da academia, na promoção da pesquisa científica lastreada em problemas reais. Desses estudos, que demandam atividades mais elaboradas, mais lentas, como no Sistema 2, surgem informações que podem diminuir a confusão na identificação do que precisa ser feito, quem precisa ser cobrado, quanto e onde deve ser investido o orçamento público, qualificando a accountability (4) promovida pela população em suas diversas formas de organização.

A sabedoria popular, no dito "não adianta chorar sobre o leite derramado", precisa ser complementada pela ideia de o que fazer após a queda do leite. O choro é válido, é humano, vem do Sistema 1, inundado de emoção. Mas é preciso entender da logística do leite, seu desenho, o porquê ele está derramando e o que precisa ser feito para ele derramar menos. Isso dialoga com o Sistema 2, e em um nível macro, com a ciência e com a política, duas potências no ataque aos problemas sociais.

Referências:

  1. KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. 1° Ed-Rio de Janeiro:
    Objetiva, 2012.
  2. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987. 288p.
  3. CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar,2018.
  4. BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo. O Diluído Federalismo de Inauguração. Portal Poder 360°. 2020. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/governo/o-diluido-federalismo-de-inauguracao-escreve-marcus-braga/. Acesso em 16.fev.2022.
*Marcus Vinicius de Azevedo Braga é doutor em políticas públicas (UFRJ)