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Fabiana Moraes

Ministra Rosa, juíza Blanche e preso preto: tudo é cor no Brasil de Kafka

Alexsandro da Conceição, acusado e preso por furtar uma bicicleta que não estava com ele no Recife - Maria Eduarda Andrade
Alexsandro da Conceição, acusado e preso por furtar uma bicicleta que não estava com ele no Recife Imagem: Maria Eduarda Andrade

Colunista do UOL

01/11/2020 04h01Atualizada em 16/04/2021 16h57

Este texto pode ser um rap, uma aula sobre cores ou capitalismo contemporâneo, um brevíssimo ensaio sobre a história do Brasil ou um conto descarado imitando Kafka. Você escolhe.

A companhia Grow declarou que está devendo R$ 40 milhões aos seus credores. Já o autônomo Alexsandro tem R$ 5 no bolso.

A Grow é dona das bicicletas e patinetes de aluguel Yellow, que ficaram conhecidos em quase todo país após o breve funcionamento do serviço. O negócio não deu certo e as operações foram encerradas.

Alexsandro é dono de uma cafeteira e de um ventilador que ele mandou consertar. Também é proprietário de um paninho laranja, acessório que, para muitos, transmuta-se em seu nome e profissão: flanelinha.

No processo 0008171-31.2019.8.17.0001, presente no Tribunal de Justiça de Pernambuco, o "Aplicativo Yellow" (na verdade, Yellow Soluções de Mobilidade, da companhia Grow) consta como vítima.

Alexsandro da Conceição, que mora no Recife e provavelmente nunca vai dever R$ 40 milhões a ninguém, consta como culpado.

Cenas da madrugada

Ele estava no bairro de Afogados, de madrugada, quando a polícia chegou trazendo Daniel da Silva Neto, abordado em Areias, um bairro a cerca de seis quilômetros dali. Daniel conduzia justamente uma das bicicletas da Yellow quando a PM passou perto e entendeu a justaposição do rapaz de 30 anos e da bike moderninha como "suspeita".

Daniel disse que o veículo era furtado, mas era outro, e não ele, o autor do crime: o culpado seria justamente Alexsandro.

A polícia saiu à procura do dono do ventilador e da flanelinha e o encontrou com Anderson Carlos da Silva, 22. Todos foram levados para a delegacia, o boletim de ocorrência foi realizado e, horas mais tarde, naquele mesmo 24 de abril de 2019, aconteceu a audiência de custódia.

É aí que aparece uma nova cor entre o redundante amarelo-Yellow e a também redundante cor preta da população carcerária do país: a juíza Blanche Maymone Pontes Matos.

A juíza Blanche

A magistrada, cujo primeiro nome significa "branco" em francês, entendeu que o flagrante dos três rapazes era legal e estava "formalmente em ordem", apesar de a prisão de Alexsandro e Anderson ter sido realizada bem depois da primeira abordagem e apesar de nenhum dos dois estar com qualquer objeto roubado.

A juíza Blanche é conhecida na capital pernambucana por decisões, para sermos elegantes, controversas: em junho deste ano, em plena pandemia, ela também decretou a prisão preventiva da técnica em radiologia e educadora popular Sara Rodrigues, grávida de 4 meses, mãe de uma criança. Acusação: tráfico de drogas e associação ao tráfico. No processo, Sara relata que a casa foi invadida por PMs sem qualquer mandado judicial.

Segundo a magistrada, em comentário enviado ao UOL, "no que diz respeito à questão de a sra. Sara estar grávida, a defesa da autuada, quando enviou email constando o seu requerimento à custódia, apesar de anexar fotografias da autuada em suposta ação social, não cuidou em juntar qualquer comprovação da gravidez. Assim, tal circunstância não poderia ser analisada nem pelo titular da ação penal (o Promotor de Justiça), e nem pela magistrada na audiência de custódia".

Dez meses antes, a mesma juíza havia concedido a liberdade provisória a Ivanildo Cícero Marques de Santana, 45, preso em flagrante pela morte da companheira.

O vigilante disse em seu depoimento que, durante uma briga com a mulher, Karina Santana, 37, disparou acidentalmente. A meritíssima concedeu liberdade, apesar do homicídio e da posse irregular de arma de fogo.

É pau, é pedra, é o fim do caminho...

Mas voltemos ao mundo dos aplicativos de mobilidade e do encarceramento em massa: a bicicleta furtada da Grow seria, contou Daniel, vendida por R$ 20 para a compra de crack. Ele e Anderson informaram que eram responsáveis pela receptação do veículo, enquanto Alexsandro, desde o momento da prisão, conta que não furtou a amarela.

Naquele momento, o valor real de uma Yellow era de R$ 400.

No Brasil, segundo o Tribunal de Contas da União, um preso custa em média R$ 23 mil ao ano.

Alexsandro foi solto. Mas, graças à PM e à juíza Blanche, ficou preso durante um ano e dois meses, ou seja: custou aproximadamente R$ 27 mil enquanto esteve encarcerado, o mesmo valor de quase 70 bicicletas novinhas da Grow.

Daniel e Anderson ainda estão na cadeia.

A juíza destaca que "após a audiência de custódia, a referida decisão foi revisitada pelo menos duas vezes por juízes do mesmo grau de jurisdição e foi mantida fundamentadamente. Pedidos de habeas corpus foram rejeitados, inclusive, no Supremo Tribunal Federal (STF).

Sobre "garantismo"

Se ao menos algum deles fizesse o favor de ser do PCC, poderiam hoje fazer valer o artigo 316 da Lei 13.964, presente no pacote anticrime aprovado em dezembro de 2019 pelo Congresso. Foi justamente ele que permitiu que o ministro do STF Marco Aurélio Mello seguisse à risca a nova lei que entende como ilegal a detenção de alguém durante mais de 90 dias sem qualquer revisão do Estado. O alguém, como se sabe, é André do Rap, agora foragido.

A lei, em si, determina a soltura: Marco Aurélio foi, como já ouvimos, "garantista". A questão é o que garantismo brasileiro também é seletivo, classista e racista.

Alexsandro, de certa maneira, deu sorte: guardando carros há cerca de cinco anos em uma área central do Recife, ele chamou atenção de um grupo de defesa dos animais por conta de seu cuidado com os quatro cachorros que criava. Com o pouco dinheiro que conseguia lavando carros e ajudando motoristas a manobrar seus veículos, ele comprava comida para os bichos que lhe faziam companhia.

Depois de dias sem vê-lo no local, algumas pessoas do grupo passaram a procurá-lo e o encontraram encarcerado. Estava no Centro de Observação e Triagem Professor Everardo Luna (Cotel), onde hoje estão cerca de 3.052 presos em um lugar com capacidade para 940 pessoas. São 3,24 presos em uma única vaga.

Em junho, advogados próximos ao grupo conseguiram finalmente tirar Alexsandro da cadeia, enquanto Daniel e Anderson permaneceram, como dito, cativos.

No buraco

Ao voltar para rua, usando uma tornozeleira, Alexsandro não encontrou O Achado, Novato, Malhada e Abandonada, nomes dos quatro cachorros que mantinha perto de si. "Eu ainda estou procurando por eles, dona", conta, falando comigo usando o celular de uma senhora que tenta ajudá-lo a se alimentar e superar a dependência das drogas.

Foi quase sempre dependendo da bondade de estranhos, como dizia outra Blanche, a da peça escrita pelo norte-americano Tennessee Williams, que Alexsandro conseguiu sobreviver nas ruas: tinha somente oito anos quando fugiu de casa.

"Eu não podia mais morar com meu pai, era espancamento todo dia."

A "casa" de Alexsandro tornou-se então um buraco sob a ponte do Limoeiro, no centro do Recife. Ele chora quando lembra desse momento e eu mudo de assunto porque não sei o que dizer a alguém que passa parte da infância em um buraco no chão.

"Fui preso antes e paguei. Paguei pelo que fiz, porque tinha mesmo furtado. Eu sou dependente, dependente de um bocado de coisa. Mas agora eu não sou culpado, fiquei preso mais de um ano e ainda estou usando essa tornozeleira, que nem cachorro."

Alexsandro chega ao STF

Hoje, o maior desejo do guardador de carros é tirar o "acessório" incômodo que o impede de sair da região metropolitana do Recife e poder se deslocar para Garanhuns, no interior de Pernambuco, onde está a Fazenda Esperança, mantida por grupos religiosos que dão apoio a dependentes de drogas. Lá, há uma vaga para ele.

É aqui que esse texto, que pode ser um rap, uma aula sobre cores ou capitalismo contemporâneo, um brevíssimo ensaio sobre a história do Brasil ou um conto descarado imitando Kafka, vai chegando ao seu final:

Quatro pedidos de habeas corpus já foram feitos pela defesa de Alexsandro. O caso foi parar no STF, o mesmo que soltou André do Rap. Lá de Brasília, a juíza Rosa Weber disse não para a liberdade do pernambucano preso acusado de furtar uma bicicleta que não estava com ele.

Na última audiência, dia 22 de outubro, o quarto pedido para que a tornozeleira seja retirada, permitindo que Alexsandro siga para o tratamento, não foi acatado pelo juiz Gilvan Macedo dos Santos, o mesmo que lançou o livro "A Discriminação do Gênero-Homem no Brasil em Face à Lei Maria da Penha".

No pedido, a defesa incluiu um documento do centro de triagem que pede encaminhamento do rapaz para atendimento. O promotor Valdecy Vieira da Silva, apesar de conferir o documento solicitado anteriormente, pediu vistas.

Alexsandro voltou para a rua, guarda carros e procura seus cachorros. Tem muito medo de voltar para o buraco.

P.S. 1: A bicicleta apreendida pela PM foi devolvida para a Yellow, que a mandou para a reciclagem ou
para doação
junto a outras milhares de bikes. Muitas foram destruídas

P.S. 2: A jornalista Maria Eduarda Andrade também escreveu sobre o caso, aqui.