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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A história dos vivos e dos mortos

 A estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, na praia de Copacabana, no Rio - ANDRE MELO/AGÊNCIA TEMPO/ESTADÃO CONTEÚDO
A estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, na praia de Copacabana, no Rio Imagem: ANDRE MELO/AGÊNCIA TEMPO/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

24/12/2021 13h06

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O nome da escritora Nélida Piñon, membro da Academia Brasileira de Letras, é um anagrama de Daniel, ou seja, Nélida é um nome formado pelas mesmas letras da palavra Daniel, dispostas em ordem diferente.

Daniel era o avô da escritora que, conforme ela conta em sua autobiografia "Coração solitário", "recolhia a neta a pretexto de arrastá-la pelos arredores do Rio ou pelo centro da cidade" e "fazia-me conhecer a rua do Lavradio, Teófilo Otôni", "ruas com nomes de próceres da pátria e de eventos históricos, que ele destacava com o intuito de não me faltarem informações para ativar a fantasia".

Os nomes de ruas, estradas, viadutos, pontes, praças, edifícios, estádios e monumentos, como já comentei alhures, servem para manter viva a história do país, podendo ser usados educativamente para ativar a fantasia não só das crianças, mas também dos adultos, atrelando-se o conhecimento do passado à geografia e à arquitetura urbana presentes.

Sempre que possível, trago à tona, no nosso programa local da BandNews FM do Rio, a história por trás de nomes mencionados no cotidiano corrido dos moradores da cidade apenas como endereços, destinos, referências espaciais ou palcos de outras atrações.

Foi o caso do violinista e maestro Leopoldo Miguez, hoje uma rua de Copacabana, mas, no final do século 19, compositor do Hino da República que ganhou de José Joaquim de Campos os versos "Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós", citados no samba-enredo de 1989 da Imperatriz Leopoldinense sobre o centenário da proclamação.

Foi o caso, também, do nobre português Mem de Sá, hoje uma rua com casas de samba na Lapa, mas, na segunda metade do século 16, o governador-geral do Brasil Colônia que expulsou os franceses do Rio, perdendo na luta seu sobrinho Estácio de Sá, fundador do que seria nossa cidade e atualmente nome de agremiação carnavalesca.

Tentativas frustradas e bem-sucedidas do poder público de alterar nomes locais também me fizeram lembrar aos ouvintes quem eram ícones como o jornalista Mário Filho, que, opondo-se ao então vereador Carlos Lacerda, defendeu a construção do Maracanã onde o estádio acabou sendo erguido, e energúmenos como o Coronel Antônio Moreira César, militar que, aos 30 anos, participou do assassinato do jornalista Apulco de Castro como "o mais afoito, o mais impiedoso, o primeiro talvez no esfaquear pelas costas a vítima", de acordo com o relato de Euclides da Cunha no livro "Os sertões".

A Alerj desistiu de mudar o nome do Maracanã de Mário Filho para Rei Pelé, enquanto Niterói mudou o nome da rua Moreira César para Paulo Gustavo, em homenagem ao comediante niteroiense que morreu de complicações decorrentes da covid-19.

Volta e meia, a depredação de estátuas ainda me faz lembrar a história de grandes nomes da música, como Noel Rosa, o sambista de Vila Isabel que morreu cedo, aos 26 anos, mas deixou uma obra imortal, e da poesia, como Carlos Drummond de Andrade, cujo poeminha "Quadrilha" também sintetizou para a posteridade os desencontros amorosos e serve eternamente como referência para a vida social e política brasileira.

"João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém", dizem os primeiros versos, que me deixam pensando se Lili realmente havia se proposto a conhecer as pessoas em seu entorno, antes de casar "com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história". Porque, apesar dos trastes que todos já conhecemos, ainda existem pessoas extraordinárias das quais muitas vezes sabemos o nome, mas pelas quais passamos, ou sobre as quais nos referimos, como se fossem meras placas de rua, indiferentes às suas singularidades.

Uma das minhas cenas cinematográficas favoritas está no filme "Feitiço do tempo", quando o jornalista interpretado por Bill Murray tenta provar à sua amada produtora que está revivendo, dia após dia, o mesmo e único dia da marmota, que ambos foram cobrir numa cidadezinha do interior. Para isso, ele mostra como sabe detalhes da vida e dos anseios dos frequentadores da lanchonete local, diante dos olhos estupefatos de cada um deles, que, assim como ela, vive aquele dia pela primeira vez.

No filme, o protagonista precisou ficar preso nas mesmas 24 horas para ouvir e conhecer os outros - que ele chamava de "caipiras" -, tornando-se uma pessoa melhor. Nas celebrações de fim deste ano e ao longo de 2022, em meio a tantas hostilidades, bravatas eleitorais e manifestações superficiais e interesseiras de afeto, quando não de absoluto desprezo à vida humana, inclusive a das nossas crianças, recomendo a todos vocês, leitores, ouvintes e espectadores, que reparem e busquem conhecer as histórias por trás dos nomes, dos mortos e dos vivos, que passam batido ao nosso redor.

Boas festas e um grande abraço do Felipe Moura Brasil.