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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O passado de Lula e o futuro da Ucrânia

Colunista do UOL

05/05/2022 17h08

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Ao contrário do que disse, diplomático, um representante da Ucrânia no Brasil, Lula não estava "mal informado" ao equiparar as responsabilidades do chefe dos agressores, Vladimir Putin, e do líder das vítimas, Volodymyr Zelensky, pela guerra atual.

Na hierarquia de valores do PT, o repúdio a um ditador sanguinário simplesmente está abaixo da fidelidade à agenda do partido; no caso, a de defender ou relativizar qualquer contraponto ao poder hegemônico dos Estados Unidos, em nome da multipolaridade.

Com o tempo - e lá se vão mais de três décadas desde que o antiamericanismo das esquerdas latino-americanas resultou no Foro de São Paulo, em 1990 -, os valores partidários são reforçados por alianças ideológicas e estratégicas até se arraigarem nos hábitos dos líderes, cristalizando uma retórica da qual eles já não conseguem se livrar.

Para Lula, nunca houve maiores problemas com ditadores cubanos, venezuelanos, nicaraguenses e russos. Suas vítimas, de algum modo, sempre estiveram e estão erradas.

Tanto que petistas repudiaram a fala do pré-candidato não do ponto de vista moral, mas eleitoral, por temor de afastar o eleitorado não convertido. Mykhailo Podolyak, assessor de Zelensky, porém, reagiu no Twitter, acusando Lula de repetir as mentiras de Putin:

"O ex-presidente Lula fala sobre a culpa da Ucrânia ou do Ocidente na guerra. Estas são tentativas russas de distorcer a verdade. É simples: a Rússia atacou traiçoeiramente a Ucrânia, a guerra está apenas no território da Ucrânia, a Rússia mata massivamente civis. Guerra clássica de destruição e ocupação."

No dia da publicação da entrevista de Lula à revista americana Time, uma reportagem investigativa da Associated Press confirmou a morte de 600 refugiados ucranianos - o dobro da estimativa anterior - no teatro de Mariupol, bombarbeado pelas tropas russas.

"O ataque ao teatro, por si só, é suficiente para reconhecer a Rússia como terrorista", tuitou Olena Halushka, do Centro de Ações Anticorrupção da Ucrânia (AntAC), sem nem citar outros casos de estupro, tortura e execução, como no massacre de Bucha.

Que Lula acuse Zelensky de querer aparecer, como se ele não precisasse de armas, munição e dinheiro para defender seu povo e pudesse resolver a guerra na cerveja, indica apenas a inveja lulista do protagonismo internacional do presidente da Ucrânia, conquistado não com propaganda personalista, mas com atos de bravura e resistência.

A diretora do AntAC, Daria Kaleniuk, que devotou dez anos ao combate à corrupção satirizada por Zelensky quando era comediante, reforçou a necessidade de arsenal:

"Para iniciar a reconstrução total, a Ucrânia precisa vencer a guerra. Para vencer a guerra, a Ucrânia precisa obter armas pesadas e modernas da Otan o mais rápido possível.

Não podemos vencer a guerra com sucata soviética, pois já estamos sem munição e não podemos produzi-la. A Rússia provavelmente tem dez vezes mais armas soviéticas que a Ucrânia.

As Forças Armadas ucranianas provaram ao mundo que podemos lutar contra o terceiro maior exército do planeta com abordagem criativa e moral elevada. Seu futuro é com a Otan."

Kaleniuk sugeriu a criação do "Fundo de Reconstrução da Ucrânia, que seria gerido por um Conselho independente composto por cidadãos ucranianos e estrangeiros".

"O dinheiro para este Fundo não deve passar pelo Tesouro Nacional da Ucrânia para evitar riscos de corrupção e atrasos. Todas as aquisições para grandes projetos de infraestrutura devem ser geridas por este Fundo. O setor de construção, altamente corrupto ao longo da história, tende a demandar a maior fatia do orçamento. O Fundo cortará a corrupção e garantirá que empresas do exterior possam concorrer."

Para fortalecer institucionalmente a Ucrânia após a desejada vitória, ela conclamou a União Europeia a abrir um processo acelerado de integração do país, com adesão em dois anos. Kaleniuk lembrou que as principais reformas anticorrupção, entre outras consideradas duras, foram implementadas quando a Ucrânia precisou seguir um roteiro específico, a partir de 2014, para obter da UE um regime de isenção de visto.

"O mesmo acontecerá com todas as reformas que precisarmos fazer para entrar na UE. O que a UE precisa fazer é apenas dizer: 'Caros ucranianos, queremos que vocês se juntem à UE em dois anos, aqui está a lista de deveres de casa que seus políticos precisam fazer. Certifiquem-se de que todos façam isso juntos.' E nós o faremos. Os políticos que retardarem essas reformas, incluindo as medidas anticorrupção, serão responsabilizados pelos ucranianos imediatamente. Será um suicídio político não fazer essas reformas."

Como não amar essa gente?

No artigo "O Brasil na contramão do combate a autocratas e ricos delinquentes", critiquei o hábito dos populistas nacionais de contornar exigências de outras democracias associando-se a ditadores. As lideranças da Ucrânia, ao contrário, estão ávidas por cumprir tais exigências para associar-se ao mundo democrático.

Depois da "solidariedade" de Bolsonaro a Putin e suas críticas à eleição de Zelensky, a entrevista de Lula deixou mais claro o destino brasileiro com essa falsa polarização: conciliar o passado do Brasil e da Ucrânia, com seus empreiteiros e políticos corruptos, e o presente da Rússia, com a realidade paralela do ditador e de seus aliados.