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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Gravação de crime: blindagem anticorrupção prejudicou combate a estupro?

Colunista do UOL

18/07/2022 20h35

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I. O jabuti

Nos casos do anestesista Giovanni Quintella Bezerra, réu por estupro de vulnerável contra uma mulher sedada que havia acabado de passar por uma cesariana em hospital de São João de Meriti-RJ, e do policial penal bolsonarista Jorge Guaranhos, indiciado por homicídio duplamente qualificado pela morte do petista Marcelo Arruda em Foz do Iguaçu-PR, "tivemos filmagens sem ciência dos criminosos".

Foi o que apontou em 12 de julho, no Twitter, Rodrigo Chemim, procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal, chamando a atenção para uma mudança legislativa que poderia, em tese, prejudicar o enquadramento dos dois acusados.

"O Parlamento derrubou o veto ao §4º do artigo 8º-A, da Lei 9296/96. Assim, o uso das imagens só vale 'em matéria de defesa'", explicou Chemim.

O referido parágrafo, vetado por Jair Bolsonaro por orientação do então ministro Sergio Moro, mas aprovado pelo Congresso Nacional, diz o seguinte (e será preciso voltar a esta formulação mais adiante, para compreender críticas e proposta interpretativa):

"A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação."

Chemim lembrou que "tem ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade] no STF, 6816" e, diante dos crimes, considerou "boa hora" para "declarar a inconstitucionalidade" da alteração na lei.

II. A diferença

A natureza das gravações, em cada caso, porém, são distintas.

O crime em Foz do Iguaçu foi registrado em imagens por câmeras de seguranças direcionadas para fora (cobrindo o estacionamento) e para dentro do salão de festa da associação onde Arruda celebrava seu aniversário até a chegada do fanático bolsonarista, de modo que não se trata de captação por "interlocutor".

Já o crime em Meriti foi filmado pelo celular de uma técnica de enfermagem que havia sido escondido e deixado com a câmera ligada em um armário com porta de vidro, dentro do centro cirúrgico, pela equipe de servidores públicos que suspeitavam da conduta do anestesista. Em razão disso, foram elogiados pela delegada do caso.

A dona do celular disse que o anestesista "estava lá há dois meses e nos conhecemos durante as operações", mas não está claro se ela participou da operação filmada e se estava no centro cirúrgico no momento do registro, de modo que há margem para confusão em relação ao conceito de "interlocutor", ainda que não haja para o estado de vulnerabilidade da vítima e o dever de cuidado e proteção imposto por lei a todos os profissionais de saúde. Uma funcionária (tampouco está claro se foi a mesma) já havia tentado fazer filmagem direta, mas precisou desligar o celular para não ser descoberta.

III. As provocações de Moro e Dallagnol

Moro compartilhou o tuíte do procurador com o seguinte comentário:

"Quero ver aparecer agora algum 'garantista' para defender que as gravações do estupro da grávida não podem ser utilizadas como prova contra o criminoso. Na época, o Congresso foi alertado de que a redação do parágrafo 4 do artigo 8.-A da Lei 9296/96 era uma péssima ideia.

Aliás, fui eu, como Ministro da Justiça, que pedi o veto presidencial sobre o dispositivo em questão, que, por sua vez, foi resultado de uma alteração ruim feita pela Câmara sobre a redação originária que constava no projeto de lei anticrime.

Mas o Congresso ignorou o alerta e derrubou o veto presidencial. Esse 'garantismo' inconsequente gera vítimas da impunidade."

Bolsonaro, na ocasião, contrariou Moro e sancionou outros jabutis, também desejados pelo PT, como as restrições à prisão preventiva e à delação premiada, além da criação da figura do juiz de garantias, todos com potencial de aliviar a barra da família do presidente, investigada por desvios em gabinetes. O referido veto foi a sua concessão.

Ele foi assim justificado pela presidência da República, em dezembro de 2019:

"A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime.

Ademais, o dispositivo vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admite utilização como prova da infração criminal a captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação. (v. g. Inq-QO 2116, Relator: Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão: Min. Ayres Britto, publicado em 29/02/2012, Tribunal Pleno)."

De fato, no inquérito 2116 QO, relatado pelo então ministro Marco Aurélio Mello, o plenário do STF assentou ser "lícita a prova obtida mediante a gravação ambiental, por um dos interlocutores, de conversa não protegida por sigilo legal". Para o Supremo, tal hipótese não está "acobertada pela garantia do sigilo das comunicações telefônicas (inciso XII do art. 5º da Constituição Federal)", pois, "se qualquer dos interlocutores pode, em depoimento pessoal ou como testemunha, revelar o conteúdo de sua conversa, não há como reconhecer a ilicitude da prova decorrente da gravação ambiental".

Já havia até decisões anteriores neste sentido, como no Recurso Extraordinário 583.937, relatado por Cezar Peluso ("é lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro"); e, em 1998, no Habeas Corpus 75.338, relatado por Nelson Jobim (é lícita "a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem a ciência do outro, quando há uma investida criminosa deste último", sendo incoerente, por exemplo, "falar-se em violação do direito à privacidade quando o interlocutor grava diálogo com sequestradores ou qualquer tipo de chantagista").

Deltan Dallagnol, ao compartilhar o tuíte de Chemim, provocou o lulista Augusto Botelho, o ex-advogado da Odebrecht que, em embate virtual recente entre eles, acabou admitindo que os R$ 15 bilhões desviados da Petrobras eram dinheiro de corrupção:

"E aí, Augusto? Pra você a gravação do estupro é ilícita e o estuprador tem que ser libertado? Ou para o clube da impunidade a prova só é ilícita quando envolve os corruptos de estimação que roubam bilhões?"

Clube da impunidade é como Dallagnol e Moro se referem ao Grupo Prerrogativas, cujos principais membros são advogados que faturaram com os réus da Lava Jato e defendiam mudanças no projeto de lei apresentado pelo então ministro.

Como lembrou Moro, referindo-se a uma declaração de Antônio Claudio Mariz em jantar pró-Lula, é "aquele [grupo] do: 'o crime já aconteceu, o que adianta punir?'".

"Se trocar 'crime' por 'estupro', a gente entende melhor as consequências da impunidade defendida por este clube. Daí vão contra argumentar: 'eu me referia à corrupção e não ao estupro'. Ah, tudo bem então!", ironizou o ex-juiz. "Difícil."

IV - A falha

Para Bruno Calabrich, professor de Processo Penal, "o caso do médico estuprador permitirá testar a interpretação/constitucionalidade do art. 8º-A, § 4º, da lei 9296/96".

"A redação do dispositivo é muito ruim, mas é possível interpretá-lo de modo a reconhecer a validade de gravações como as feitas nesse caso."

Em julho de 2021, os membros do MP e professores Vladimir Barros Aras e Antonio Henrique Graciano Suxberger anteciparam os problemas do referido dispositivo no artigo "A admissibilidade de gravações unilaterais como prova", no qual afirmaram não ser difícil "antever que" o tema "voltará a ser discutido nos tribunais superiores em face da derrubada do veto presidencial".

Diante da nova redação da Lei 9.296/1996, questionaram:

"A gravação feita pela mãe de criança vítima de abusos sexuais por parte de outro familiar ou de um estranho será válida para subsidiar eventual acusação contra o suspeito de abuso?

O registro em áudio ou vídeo realizado unilateralmente pela vítima de um ataque verbal racista que tenha sofrido em ambiente privado poderá servir de prova em um processo penal?

A oferta de propina a um funcionário público captada em meio audiovisual por ele próprio tem valor como prova em juízo criminal?

A gravação feita pela vítima da extorsão poderá ser usada em juízo contra o extorsionista?"

Para os autores, o § 4º "deveria guardar pertinência com o que estabelece a cabeça do artigo" 8º-A.

"O caput é claro: trata de captação ambiental, a ser previamente autorizada pelo juiz, de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos. Todos os parágrafos do art. 8º-A, exceto o § 4º, versam exatamente sobre captação ambiental."

Eles apontaram a "falha" dos legisladores:

"Entretanto, em nítida falha legística, o § 4º tem conteúdo diverso: trata-se de enunciado normativo que versa sobre 'captação' ambiental feita por um dos interlocutores e, atenção a este ponto, sem autorização judicial. Ele não complementa o artigo em que se insere. Ao contrário, ele simplesmente versa sobre conteúdo distinto."

"Se um dos interlocutores registra o conteúdo da conversa, essa gravação não materializa propriamente uma captação ou interceptação... Aquele que grava é legítimo destinatário da comunicação. Logo, não se cuida propriamente de uma captação, mas simplesmente de gravação ou registro sem conhecimento do interlocutor."

São justamente os casos com jurisprudência assentada nos tribunais superiores.

V - A interpretação

"A equivocada alocação do §4º do art. 8º-A da Lei 9.296/996 e sua baixa qualidade semântica comprometem sua imediata compreensão", criticam Vladimir Aras e Antonio Suxberger, que fazem então uma proposta de interpretação "compatível com as vontades do projetista e do legislador e com a integridade do sistema de garantias":

"Propomos interpretá-lo da seguinte maneira: a gravação feita pela vítima de um ilícito penal - ou por um terceiro no interesse desta - poderá ser validamente usada em qualquer investigação criminal ou processo penal contra o suspeito, se for íntegra, isto é, se for autêntica e não tiver sido adulterada, editada ou manipulada."

Adequa-se ao caso do estuprador a hipótese prevista um ano antes de que a gravação pudesse ter sido feita "por um terceiro no interesse desta", ou seja, da vítima. Foi isto que aconteceu em Meriti, considerando que terceiros esconderam um celular ligado no armário para flagrar o ato criminoso. Ainda que não tenham evitado a violação da vítima, coletaram prova em seu interesse, capaz de levar à responsabilização do autor do crime, evitando a continuidade delitiva.

"No entanto, essa mesma gravação não poderá ser usada em juízo contra o suposto criminoso, ainda que íntegra, se for fruto de atividade investigativa estatal, isto é, se for o produto de orientação passada à vítima pelo Ministério Público ou pela Polícia, com o fim de se produzir informação ou futura prova, para uso na persecução criminal."

Esta parte da interpretação não deixaria de agradar aos parlamentares federais que têm medo de serem flagrados em atos ilícitos, em ação coordenada da PF com o MP.

Mas a redação dada pelo Congresso, a rigor, busca evitar que a gravação feita por um interlocutor sem prévio conhecimento da autoridade policial ou do MP seja usada para acusação. Exemplo: um parlamentar é flagrado oferecendo ou pagando propina a um interlocutor que o grava, ou recebendo dele o dinheiro sujo. A Câmara dos Deputados tentou evitar o transtorno jurídico causado por um flagrante dessa natureza.

Por isso, os deputados restringiram sorrateiramente o uso da gravação, inserindo no texto a expressão "em matéria de defesa". Relembro a redação:

"A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação."

Da formulação, por outro lado, depreendem-se duas possibilidades interpretativas:

1) Se a "captação" for feita COM conhecimento de MP e Polícia, mesmo que sem autorização judicial, não há restrição, podendo ser usada tanto para acusação quanto para defesa. Exemplo: se o interlocutor gravou a negociata da propina, orientado pelas autoridades, aí tudo bem. O problema seria ele gravar por vontade própria, de modo que, neste caso, o MP não poderia, por exemplo, usar a gravação para denunciar os envolvidos por corrupção ativa ou passiva.

2) Se a "captação" for feita COM conhecimento de MP e Polícia, ela não poderá ser utilizada. Esta é a interpretação proposta por Vladimir Aras e Antonio Suxberger: "a de impedir que os órgãos estatais de persecução usem a vítima, uma testemunha ou mesmo um réu colaborador como agente estatal para gravar conversas próprias, a serem mantidas com outrem, sem autorização judicial".

"A depender do caso, esta seria uma forma de entrapment [armadilha] ou de deception, incompatíveis ambas com o devido processo legal em sua dimensão mais ampla, já que dali em diante, em já existindo o planejamento de ações investigativas do Estado sobre o suspeito, já terá incidência todo o conjunto de garantias que protegem seus direitos materiais, nos termos da Convenção Americana de Direitos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e da Constituição Federal.

Para entender onde se coloca a questão, basta comparar a situação de uma gravação dialógica orientada pela Polícia com a de um interrogatório policial informal, realizado sem que o suspeito seja previamente advertido de seu direito ao silêncio e de seu direito à presença de um advogado ou defensor público."

Vladimir Aras acrescentou uma explicação à coluna: "A proibição do uso da prova obtida sem autorização judicial COM prévia intervenção do MP ou da Polícia (orientando a vítima a gravar) serve para evitar que o promotor ou o delegado usem esse expediente para não ter de pedir a autorização judicial."

No artigo, ele e Suxberger prosseguiram em defesa da proposta interpretativa:

"A interpretação que propomos tem duas vantagens: limita a atuação do Estado, especialmente a da Polícia e a do Ministério Público quanto a escutas ambientais realizadas sem autorização judicial, quando exigível, mas não desprotege as vítimas de infrações penais. Estas continuarão a poder gravar tais situações desde que o façam motu proprio. Gravações de conversa própria continuam permitidas, desde que de iniciativa do interlocutor, sem qualquer espécie de incentivo ou assistência estatal."

Tudo isso bastaria para enquadrar o estuprador, por exemplo.

Mas ainda há mais um argumento para evitar que a expressão "em matéria de defesa" impeça o uso da gravação para acusação ou, o que seria mais bizarro, restrinja o uso somente ao interlocutor, autor da gravação, para defender-se em investigação ou processo criminal no qual seja suspeito ou réu.

Para os autores, "tal interpretação restritiva não se sustenta, por ser desproporcional, acarretando a desproteção das vítimas de crimes graves".

"A palavra 'defesa' é polissêmica e não diz respeito apenas à refutação de acusações penais. Incorpora também, pelo menos, a defesa dos direitos e interesses das vítimas de infrações penais e os das pessoas vulneráveis em geral. Logo, tendo em conta o princípio da máxima efetividade e proteção dos direitos humanos, deve prevalecer a noção de que a gravação própria ou executada por particular ('escuta'), a pedido de um dos interlocutores, pode ser usada também em matéria de defesa dos direitos das vítimas de ilícitos em geral, desde que, atente-se, tal providência não seja manifestação de atividade probatória orientada ou incentivada pelo Ministério Público ou pela Polícia."

Por extensão, a gravação executada pelo equipamento de uma funcionária do hospital deve ser usada, obviamente, em matéria de defesa da vítima do estuprador.

"Melhor seria interpretar extensivamente a expressão 'em matéria de defesa', para abarcar a defesa de qualquer direito e interesse, inclusive do ofendido (vítima)", afirmou a esta coluna o procurador Helio Telho. "Se o ofendido produz a gravação, ele está agindo em legítima defesa própria. Se terceiro o faz no interesse da vítima, está agindo em legítima defesa de terceiros. O exercício da legítima defesa não é ato ilícito. Logo, a prova dela decorrente é naturalmente lícita", argumentou.

Bruno Calabrich, que criticou no Twitter análises de outros autores sobre o tema, afirmou que "a interpretação equivocada que estão querendo dar ao artigo manteria na algibeira a nulidade em casos nos quais não seja causada tamanha comoção pública".

VI - O corretivo

Sergio Moro também falou à coluna.

"Eu defendo a interpretação do Vladimir, que tenta consertar a irresponsabilidade de nosso Congresso na questão. Acho, porém, que o melhor era suprimir o 'em matéria de defesa', que não estava na redação originária do projeto", disse o ex-juiz, assegurando que os legisladores foram "bem alertados" sobre as consequências deste trecho em reuniões com a sua presença. "Assim, evitaria qualquer dúvida. Mas, para isso, só por nova lei ou se o STF reputar inconstitucional".

Ele, então, sugeriu a Capitão Augusto (PL-SP) um projeto de lei corretivo, que foi apresentado pelo deputado federal na quarta-feira, 13 de julho. Mas o texto, em vez de suprimir o trecho problemático, acrescenta outro, deixando "expresso que gravações podem, sim, ser utilizadas em favor das vítimas, extirpando, assim, qualquer possibilidade de amparar a impunidade de infratores da lei", como defendeu Augusto.

Pela redação proposta, "a captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa ou em favor da vítima, quando demonstrada a integridade da gravação".

Para Moro, "é mais fácil defender essa mudança que agrega do que a supressão" do trecho anterior.

VII - A palavra final

Como ou sem corretivo, porém, os tribunais superiores dificilmente impedirão o uso da gravação em defesa da vítima de estupro. Resta saber o quanto da blindagem desejada pelos parlamentares contra flagrantes de corrupção o STF ainda vai preservar.