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Fernanda Magnotta

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Conflito com Irã aproxima Biden de Trump

Presidente Joe Biden - Chip Somodevilla/Getty Images/AFP
Presidente Joe Biden Imagem: Chip Somodevilla/Getty Images/AFP

Colunista do UOL

27/02/2021 04h00

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Joe Biden chegou ao poder tendo prometido reverter boa parte das medidas adotadas durante a era Trump. Em matéria de política externa, a expectativa era de que retomasse a aliança com parceiros tradicionais, reengajasse os Estados Unidos no sistema multilateral e revisse agendas de seu antecessor.

Sem surpresa, portanto, já nos primeiros dias, Biden fez questão de marcar posição: modificou decisões sobre o Acordo de Paris e a participação dos Estados Unidos na Organização Mundial da Saúde. Anunciou o fim de investimentos federais para a construção do muro na fronteira com o México, sugeriu alterações na política imigratória e, por meio de ordem executiva, desfez a proibição de viagens de uma série de países de maioria muçulmana aos Estados Unidos. Buscou, com isso, afastar-se como pôde de Trump.

Contudo, pouco após completar um mês no cargo, o presidente acaba de ordenar a primeira ação militar de sua administração no exterior: ataques aéreos em território sírio, visando atingir milícias apoiadas pelo Irã. Segundo a narrativa oficial do governo, essa seria uma resposta a investidas recentes ocorridas contra forças norte-americanas e aliados no Iraque. O episódio gerou polêmica dentro e fora dos Estados Unidos, particularmente porque, durante a campanha eleitoral, Biden criticou movimentos de Trump no Oriente Médio e expressou a intenção de restaurar o relacionamento com o Irã.

O acordo nuclear com o Irã - designado "Joint Comprehensive Plan of Action" (JCPOA) - foi um dos principais legados da gestão Obama, de que Biden foi vice-presidente. Foi importante para conter a escalada de tensões entre os países e controlar movimentos geopolíticos na região, ainda que tenha tido altas taxas de desaprovação, mesmo na época de sua formalização, em 2015. Duramente criticado por Trump, tornou-se objeto central de disputas.

Em 2018, os Estados Unidos anunciaram oficialmente a sua retirada do JCPOA e divulgaram sanções ao Irã como parte de uma política de "pressão máxima". O Irã respondeu aumentando o enriquecimento de urânio. Em 2019, a administração Trump designou um braço do exército iraniano como organização terrorista estrangeira. No mesmo ano, os Estados Unidos acusaram o Irã por ataques contra dois petroleiros nas proximidades do Estreito de Ormuz. Na ocasião, Trump referiu-se ao país como "uma nação do terror". Meses depois, os norte-americanos também imputaram responsabilidade aos iranianos sobre drones que tinham atacado as instalações da Saudi Aramco, na Arábia Saudita.

No começo de 2020 os Estados Unidos executaram Qasem Soleimani, comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária, em Bagdá. Ele era considerado a segunda pessoa mais poderosa do Irã, depois do líder supremo Ali Khamenei. Segundo os norte-americanos, essa teria sido uma resposta à tentativa de ataque à uma embaixada dos Estados Unidos no fim do ano anterior por manifestantes iraquianos e milícias apoiadas pelo governo iraniano. Foi quando o Irã declarou vingança e anunciou que não mais se comprometeria com as restrições do acordo nuclear de 2015.

Conforme conta a história, se questões estruturais já fazem o cenário ser intrincado, não resta dúvida que a deterioração da confiança ocorrida nos últimos anos agregou ainda mais complexidade ao contexto negocial. O desafio é, portanto, enorme para Biden.

Embora tenha criticado as ações de Trump, seu governo enfrentará dificuldades reais na tentativa de trilhar caminhos alternativos. Do ponto de vista sistêmico, a reconstrução do relacionamento bilateral e, principalmente, a renegociação das salvaguardas nucleares, esbarram na triangulação com outras potências. Do ponto de vista doméstico, implica criar consensos sensíveis: primeiro, com a oposição republicana, depois, entre os democratas e, por fim, junto da opinião pública norte-americana.

Dados da Gallup, indicam que, em 2020, cerca de 88% dos entrevistados mostravam visão desfavorável sobre o Irã. Quando perguntados sobre qual país, em qualquer lugar do mundo, consideravam o maior inimigo dos Estados Unidos, o Irã apareceu em terceiro lugar, atrás apenas de Rússia e China. Em 2020, 19% referiram-se dessa forma ao Irã. Em 2015 havia sido apenas 9%.

A análise de política externa costuma levar em consideração continuidades e rupturas entre novos e velhos governos. Isso significa comparar, a todo tempo, o discurso e as práticas da administração vigente em relação às suas antecessoras. Para além de notar mudanças, trata-se de um método eficaz tanto para avaliar as principais causas que levam os governos a adotarem novos rumos quanto para medir a extensão dessas alterações.

Desse ponto de vista, parece claro que, até o momento, prevalecem mais traços de mudanças de orientação internacional, por parte da gestão Biden, do que sinais de alinhamento com o governo Trump. No entanto, não se pode ignorar que também ocorrerão decepções: pode ser o caso da relação com o Irã.