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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonaro se perdeu no personagem e compromete a reputação do Brasil

Diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, em Genebra - Denis Balibouse
Diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, em Genebra Imagem: Denis Balibouse

Colunista do UOL

06/03/2021 04h00

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Nos últimos dias, o editorial do Washington Post, um dos mais importantes jornais do planeta, afirmou categoricamente: "o Brasil está cambaleando com a pandemia do coronavírus e sua agonia deveria ser um alerta para o mundo".

Foi uma, entre tantas outras vozes, que manifestaram preocupação com os perigos representados pela falta de controle da doença no Brasil. Temos ouvido o mesmo discurso, sistematicamente, de diferentes interlocutores: de representantes da OMS, de lideranças internacionais, da mídia local e estrangeira, e, claro, da comunidade médica e científica. On e off the records.

O número de mortos no Brasil atinge novos recordes a cada levantamento. O país soma mais de 260 mil mortes de covid-19, e galga, vigoroso, posições cada vez mais elevadas em rankings nefastos, como o de média de óbitos diários por milhão de habitantes. O sistema de saúde dá sinais de colapso em boa parte dos estados da federação. A vacinação sofre com atrasos e escassez de recursos.

Enquanto enterramos nossos mortos, sofremos com a falta de planejamento e desviamos de manifestações pavorosas de nossas autoridades. Testemunhamos também a reputação internacional do Brasil simplesmente derreter.

O controle da pandemia é assunto sério. Implica salvar pessoas e também garantir a elas um futuro digno. Envolve definir qual é o lugar que desejamos ocupar no mundo, qual história contarão a nosso respeito, como essas narrativas afetarão a defesa de nossos interesses enquanto sociedade e Estado no longo prazo.

Persiste no Brasil um debate inócuo sobre ter de optar "pela saúde" ou "pela economia". Trata-se de um falso dilema, já amplamente refutado pelos especialistas. As duas dimensões são faces indissociáveis de um mesmo problema e a resposta é clara: a prioridade deve ser a vida, tanto por razões morais, quanto por razões econômicas.

Sempre é tempo de lembrar o estudo feito por pesquisadores da Sloan School of Management do MIT em parceria com o Federal Reserve, o Banco Central dos Estados Unidos. Publicado no começo de 2020, o material analisou as políticas adotadas durante a Gripe Espanhola de 1918 naquele país. Concluiu que regiões que adotaram medidas agressivas e severas mais precocemente e de maneira planejada, incluindo as chamadas "intervenções não-farmacêuticas" (isto é, distanciamento social, quarentena ou lockdown), sofreram com menos perdas econômicas, e se recuperaram mais rapidamente no que tange a emprego e produção industrial.

Incentivar as pessoas a tomar lados, portanto, não passa de um diversionismo que em nada ajuda o Brasil. Aliás, ao contrário, reforça o estigma de que, na contramão do resto do planeta, nos tornamos berço de um negacionismo juvenil. Negacionismo esse que agora ameaça não somente a vida dos brasileiros e a economia do país, como também expõe ao mundo as nossas mazelas.

Além das barreiras de entrada já impostas no exterior e da má fama que povoa o noticiário em vários idiomas, devemos estar preparados para enfrentar novos capítulos dessa história: aumento da xenofobia, da fuga de investimentos e a deterioração do ambiente de negócios. Seremos penalizados em múltiplos níveis, de forma direta e indireta, subjetiva e materialmente, pela governança irresponsável que agora fazemos.

O editorial do Washington Post cravou: "o que acontece no Brasil não fica no Brasil". É uma verdade incômoda. Todos sabemos que é necessário uma vida inteira para construir uma reputação, mas apenas poucos segundos para destruí-la. Já cruzamos todas as linhas.

O populismo costuma ser alimentado pela desinformação e pela ignorância. Por aqui, encontra terreno fértil numa sociedade profundamente ressentida e desigual. Não há paralelos possíveis para o que ocorre no Brasil de 2021. Mesmo líderes considerados análogos em outras partes do mundo se renderam à dureza da realidade e à objetividade de suas consequências.

Os Estados Unidos de Donald Trump compraram todas as vacinas da Pfizer e da BioNTech ainda em 2020. Foram 100 milhões de doses de uma única vez.

O premiê israelense Benjamin Netanyahu apareceu recentemente em um vídeo que "viralizou" na internet desmentindo notícias falsas sobre a vacina e dizendo que ela é segura e que foi desenvolvida por experts. Israel é o país que mais vacinou seus habitantes no planeta.

Na Hungria, o governo de Viktor Orbán acaba de anunciar novas medidas de restrição, incluindo fechamento de lojas e adoção de ensino remoto nas escolas primárias. Desde o fim do ano passado, o país adota toque de recolher noturno. Também protagonizou recentemente conflitos com a União Europeia na tentativa de acelerar seu programa de vacinação.

No Brasil, Bolsonaro se perdeu no personagem. Preocupado em energizar as bases e criar cortinas de fumaça que garantam sobrevida política, rifou a credibilidade internacional do país. Se há alguns anos o Brasil se preocupava por ser chamado de "anão diplomático", agora precisará desviar da pecha de "ameaça global".

Vemos todos os dias a esperança do futuro ser colonizada pela crueldade do presente. Para os brasileiros, nunca fez tanto sentido citar Gramsci: estamos vivendo entre o "pessimismo da razão" e o "otimismo da vontade".