A viagem de Vargas Llosa pelo sertão baiano para narrar a Guerra de Canudos

Ler resumo da notícia
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, morto há uma semana aos 89 anos, passava dos 40 quando recebeu um telefonema em sua casa na capital Lima.
Do outro lado da linha, em Paris, um executivo da Paramount Pictures o convidava a escrever o roteiro de um filme do cineasta Ruy Guerra, moçambicano radicado no Brasil.
O ano era 1977 e ele tinha acabado de publicar um de seus romances mais autobiográficos, "Tia Júlia e o Escrevinhador", cuja linha principal é inspirada na história de seu primeiro casamento com uma tia de consideração, dez anos mais velha.
À época, Vargas Llosa já era um dos mais reconhecidos prosadores do chamado "boom" da literatura latino-americana, tinha vivido temporadas em Paris, Londres e Barcelona, e casado pela segunda vez, com uma prima, mãe de seus três filhos.
Ele rompera a amizade com Gabriel García Márquez, outro grande nome do "boom" e ex-vizinho em Barcelona.
O estranhamento entre os dois começou por questões políticas — o peruano caminhava para o lado conservador do espectro político, enquanto o colombiano se mantinha à esquerda, apoiando o regime de Fidel Castro em Cuba.
O rompimento entre os dois foi selado com um soco no rosto, em um cinema na Cidade do México, numa noite de 1976, e a política nada tinha a ver com a escaramuça. Até hoje se especula sobre o que Gabo fez a Patrícia, a esposa de Vargas Llosa, para merecer aquele olho roxo.

Um roteiro malogrado vira livro
Mal sabia Vargas Llosa que aquela ligação do executivo da Paramount marcava o começo do projeto que mais exigiria de suas capacidades literárias.
"É o romance em que mais trabalhei, a que mais me dediquei", afirmaria o escritor, anos depois, ao jornalista brasileiro Ricardo Setti. As declarações de Vargas Llosa foram retiradas dessa entrevista.
O romance é "A Guerra do Fim do Mundo", publicado em 1981. Foi seu primeiro livro cuja história não transcorria no Peru.
O futuro Prêmio Nobel de Literatura recriou a Guerra de Canudos, o conflito armado no sertão da Bahia entre o Exército brasileiro e os seguidores do líder messiânico Antônio Conselheiro.
A última batalha que marcou a destruição completa do povoado ocorreu em 1897.
Depois de falar com o chefe da Paramount, Vargas Llosa viajou a Paris, onde conversou com Ruy Guerra, que lhe disse ter uma ideia de fazer um filme inspirado no confronto no sertão baiano.
"Eu não sabia nada da história. Nunca tinha ouvido falar na Guerra de Canudos."

Vargas Llosa começou uma extensa pesquisa documental e um dos primeiros livros que leu foi o clássico "Os Sertões", de Euclides da Cunha.
"Foi realmente o encontro com um livro muito importante, com uma experiência fundamental. Um deslumbramento, realmente, um dos grandes livros que já se escreveram na América Latina."
O romance é justamente dedicado a Euclides e a Nélida Piñon, amiga do escritor peruano.
"Creio que a pessoa a quem realmente devo ter escrito 'A Guerra do Fim do Mundo' é Euclides da Cunha."
O projeto do filme malogrou e Vargas Llosa ficou com um roteiro nas mãos e uma ideia persistente na cabeça.
Ele defendia que um escritor não escolhe seus temas, são os temas que os escolhem.
A saga de Antônio Conselheiro e de seus sertanejos tinha conquistado o peruano.
"Nunca uma história me apaixonou tanto como 'A Guerra do Fim do Mundo'. Todo trabalho para mim foi muito apaixonante, desde as coisas que li até a viagem que fiz pelo Nordeste."
Mas, antes de viajar para a Bahia, ele passou dois anos escrevendo o "magma" do romance, com bastante angústia e insegurança.
"Eu queria, à base exclusivamente de documentação, imaginar, fabular um pouco a história, e só depois viajar. E a viagem foi muito importante, porque me confirmou muitas coisas, me deu ideias novas para outras. Muita gente me ajudou.".

Vargas Llosa, o 'Argentino'
Ajuda providencial foi oferecida por historiadores baianos, a exemplo de José Calazans, tido como o maior especialista em Canudos na universidade brasileira, e Renato Ferraz, profundo conhecedor da cultura sertaneja e que exerceu o papel de companheiro de viagem do peruano pelo sertão baiano, no segundo semestre de 1979.
Jorge Amado intermediou esses e outros contatos.
"Quando Mario me disse que escreveria um romance sobre Canudos, botei a mão na cabeça e pensei: vai ser um desastre. Não foi", disse o escritor baiano, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1994.
Vargas Llosa fez um "sucesso terrível", afirmou Jorge Amado.
"As mulheres ficaram doidas pelo Argentino, como ficou conhecido no sertão da Bahia."
Porém, Vargas Llosa não buscava "romances". Ele perseguia o rastro de seu romance sobre Canudos.
Ao lado de Renato Ferraz, enfrentando temperaturas nada amenas, percorreu 25 povoados em que se registrou a presença de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro.
Durante o mês de viagem, agosto de 1979, ele conversou com dezenas de pessoas, entre camponeses, vaqueiros, párocos, cantadores ambulantes e agricultores.

A história da Guerra de Canudos
Em uma região desassistida por todas esferas de governo, marcada pela fome, a miséria e a seca nordestina, por volta de 20.000 pessoas passaram a seguir os sermões do líder messiânico Antônio Conselheiro.
O arraial ocupava uma fazenda improdutiva na região de Canudos, no sertão baiano. Os primeiros conflitos com representantes das forças de segurança pública datam de 1893.
O crescimento de Canudos incomodou a Igreja Católica, latifundiários e autoridades locais. Conselheiro renegava a "diabólica" República. Porém, Canudos não representava uma ameaça real ao novo regime.
Clamores pela destruição da comunidade chegaram ao Rio de Janeiro, então capital do país. O governo do presidente Prudente de Morais deu a ordem para destruição de Canudos.

"Interesses políticos e patrimoniais deram novos rumos e destino sangrento ao sertão do Conselheiro", afirmou o historiador baiano José Calazans, em artigo publicado na Folha.
"Morreram milhares de sertanejos, denominados pejorativamente de jagunços, de bandidos, malfeitores. O maior equívoco da história nacional."
O Exército brasileiro enviou quatro expedições para destruir a comunidade, entre novembro de 1896 e outubro de 1897. Cerca de 5.000 soldados de todo o país participaram do massacre. Homens foram degolados e todas as casas do arraial vieram abaixo.
A maioria dos historiadores estima que 20 mil a 25 mil pessoas foram assassinadas durante os confrontos.

Vargas Llosa encontra a cruz de Canudos
As ruínas da Canudos de Conselheiro foram submersas pelo Açude Cocorobó em 1968.
Onze anos depois, durante suas conversas com os sertanejos que encontrava pelo caminho, Vargas Llosa percebeu que a lembrança da guerra resistia à passagem do tempo.
"As pessoas falavam com uma enorme facilidade. Não há família que não tenha tido algum avô, tio-avô, às vezes um pai que não houvesse sido vinculado à história", disse o escritor.
Quando chegou ao monte em que transcorreu a grande batalha pelo destino de Canudos, Vargas Llosa encontrou a cruz da igreja da comunidade, repleta de estilhaços de bala.
"Talvez para mim o dia mais emocionante da minha vida. Eu estava há dois anos trabalhando nisso, e era como se minha fantasia se estivesse materializando".

Visões de Vargas Llosa sobre Canudos
Na volta da viagem pelo sertão baiano, a angústia que caracterizava os primeiros dois anos de trabalho no romance se dissipou. Ele continuou a trabalhar por doze horas por dia. Dessa vez, com alegria.
A estrutura e a trama começam a se delinear nos dois anos seguintes.
A figura do Conselheiro ganha relevo. "O homem era alto e tão magro que parecia sempre de perfil", assim começa o livro.
Outros personagens também ganham forma: Barão de Canabrava, o Leão de Natuba, o Jornalista Míope (inspirado em Euclides da Cunha), entre outros.
O romance é polifônico, épico e, certamente, sua obra mais violenta:
O Coronel Geraldo Macedo continua escavando entre fedorentos cadáveres, nariz e boca cobertos pelo lenço, a outra mão afastando revoadas de moscas, livrando-se, às vezes, com chutes, dos ratos que sobem suas pernas, porque, contra toda a lógica, alguma coisa lhe diz quando encontrar a cara, o corpo ou os simples ossos de João Abade saberá que são dele.
Trecho de "A Guerra de Fim do Mundo", de Mario Vargas Llosa
A visão do escritor sobre o acontecimento é mordaz. Para ele, e aqui o comentarista político escorrega nas nuances do fato histórico que o romancista tão bem soube explorar, os partidários da República e os seguidores de Antônio Conselheiro padecem de uma mesma cegueira.
"A tragédia da América Latina é que, em vários momentos da história, nossos países se encontram divididos e em meio a guerras civis, repressões massivas, massacres como o de Canudos, por causa dessa mesma cegueira recíproca. Nossa história foi marcada por nossa incapacidade de aceitar diferenças de opinião."

Vargas Llosa continuou a produzir romances em série, fez uma incursão fracassada na política, quando tentou se eleger presidente do Peru, em 1990. Seu programa neoliberal foi posteriormente adotado em parte por Alberto Fujimori, seu adversário.
Foi escolhido para o prêmio Nobel de Literatura em 2010, quase 30 anos depois de Gabo, "por sua cartografia de estruturas de poder e suas imagens incisivas da resistência, revolta e derrota do indivíduo".
Encerrou a vida tão abraçado ao reacionarismo que chegou a defender votos em candidatos da extrema direita, a exemplo do ex-presidente Jair Bolsonaro e do chileno José Antonio Kast, defensor do legado do facínora Augusto Pinochet, e até a filha de Fujimori, Keiko.
Ao mesmo tempo, ele esculhambou em suas colunas jornalísticas o filistinismo de Donald Trump.
No fim, o que resta é a literatura.
A descoberta da Guerra de Canudos, a leitura de Euclides da Cunha e de outros milhares de páginas de documentos históricos, e a viagem pelo sertão baiano permitiram a Vargas Llosa encontrar o romance que ele sempre quis escrever.
"Um romance de aventuras, em que a aventura fosse o principal, não a aventura puramente imaginária, mas com raízes muito fortes numa problemática histórica e social", afirmou na entrevista a Ricardo Setti.
"Talvez por isso me refira a ele como meu livro mais importante."
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.