Matador dos Bálcãs saiu de prisão em 2023 após ordem de Moraes ser ignorada
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O cidadão sérvio Luka Starcevic saiu pela porta da frente da Casa de Custódia de São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, no dia 23 de junho de 2023. Mas este fato não deveria ter acontecido.
O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes havia determinado em 2021 a prisão preventiva de Starcevic, no âmbito de um processo de extradição para seu país natal. A decisão foi ignorada.
Dois anos depois da saída do criminoso da cadeia, a Polícia Federal desconhece seu paradeiro.
Ele é acusado de cometer o assassinato que desencadeou uma guerra em 2015 entre duas gangues que dominam o crime organizado da região dos Balcãs, no Leste Europeu.
Órgãos brasileiros diretamente envolvidos no caso, STF, PGR (Procuradoria-Geral da República), Ministério da Justiça e Tribunal de Justiça do Paraná preferiram o silêncio a explicar o que houve.
Já o Depen-PR (Departamento Penitenciário do Paraná) afirma que cumpriu o alvará de soltura de Starcevic porque o mandado de prisão do STF não teria sido registrado no BNMP-CNJ (Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões do Conselho Nacional de Justiça), conforme prevê a lei.
A coluna entrevistou autoridades e teve acesso a documentos oficiais que reconstroem a confusão institucional que resultou na liberdade do mafioso sérvio.
O homicídio de Goran Radoman
Últimas das repúblicas da antiga Iugoslávia a se separarem, Sérvia e Montenegro deixaram de ser um só país em junho de 2006.
Gângsteres das duas nações atuam juntos nos esquemas de tráfico internacional de cocaína. Em uma inversão histórica, as gangues montenegrinas passaram a comandar criminosos sérvios.

Essas organizações se tornaram especialistas em transportar cocaína por rotas rotineiras da América Latina para algumas cidades marítimas europeias.
Aqui no Brasil, investigações policiais registram a parceria de criminosos daquela região com o PCC (Primeiro Comando da Capital) e a maior máfia do mundo, a italiana 'Ndrangheta, para o envio e distribuição da droga para a Europa.
O principal grupo criminoso dos Balcãs atendia pelo nome de Skaljari, cuja origem remonta a Kotor, na costa de Montenegro.
No ano de 2014, o clã se dividiu em dois grupos que começaram uma guerra fratricida, Kavac e Skaljari, com ampla vantagem para o primeiro. Desde então, mais de 60 pessoas foram assassinadas em 12 países, inclusive no Brasil.
O homicídio-estopim do conflito aconteceu em 17 de fevereiro de 2015, quando o traficante Goran Radoman foi metralhado com 25 tiros de AK-47, a Kalashnikov, na garagem do prédio onde morava em Belgrado, capital da Sérvia.
A Procuradoria contra o Crime Organizado da Sérvia acusa Luka Starcevic de ser um dos assassinos de Radoman.
Dias antes da emboscada, ele teria instalado um rastreador GPS embaixo do para-choque traseiro da BMW dirigida por Radoman e participado da execução.
Starcevic fugiu da cena do crime e, anos depois, foi dado como morto na Espanha.
Starcevic usava identidade falsa no Brasil
Porém, a pista do seu real destino ressurgiu cinco anos depois, quando agentes da Polícia Rodoviária Federal prenderam o croata Luka Maric, na BR-116, na altura da cidade paulista de Juquiá.
Ao ser preso em 21 de julho de 2020, em plena pandemia do coronavírus, Maric tinha quase R$ 10.000 em uma mochila.
Ele havia contratado um motorista particular para levá-lo a Santos, cujo porto é um dos principais vetores de envio de cocaína para a Europa.
Maric era procurado pela Interpol e integrava uma quadrilha internacional de traficantes chefiada pelo brasileiro Hernandes Oliveira da Silva, conhecido como Mike, de acordo uma investigação da Polícia Civil do Paraná.
Mike forjou a própria morte para escapar de ser preso, tendo construído até uma lápide para si mesmo. Ele foi encontrado pela Interpol no Uruguai.

"Tratava-se de uma quadrilha de alto poder aquisitivo. Criaram um programa próprio para a troca de mensagens entre os membros. Eles negociavam a compra de um jatinho e os indícios encontrados mostram que toneladas de cocaína seriam enviadas para Europa, pelo aeroporto de Lisboa e o porto de Antuérpia, na Bélgica", afirma a delegada Tathiana Guzella, que comandou o inquérito policial contra a quadrilha.
Filiada ao União Brasil, ela exerce, atualmente, o mandato de vereadora em Curitiba.
Quando as investigações prosseguiram ficou evidente que Luka Maric era um nome falso, sob qual Luka Starcevic se escondia no Brasil.
"Ele era uma espécie de gerente do esquema de tráfico e recrutava outros criminosos", afirma a vereadora.
Documentos judiciais encontrados pela coluna mostram que ele já tinha sido preso outras vezes no Brasil, sob acusação de tráfico internacional de drogas.
Homicídios no Paraná
A investigação da Polícia Civil paranaense indiciou Starcevic, Mike e outro investigado pelos assassinatos do ex-policial civil Samir Skandar e do porteiro Alvari de Paula Silva. Eles morreram a tiros em 9 de novembro de 2019.
Skandar fazia parte da quadrilha e, ao mesmo tempo, atuava como informante da Polícia Federal. Sua morte foi decretada depois que ele se recusou a participar de um sequestro ordenado por Mike e Starcevic, de acordo com o inquérito policial.
Os dois são suspeitos também de um assassinato de outro sérvio: Marjan Jocic, membro da quadrilha cujo corpo foi encontrado submerso em um lago de Campo Magro, na Região Metropolitana de Curitiba, no dia 4 de maio de 2020.
"Há um outro sérvio que desapareceu e que morava com Marjan Jocic, e também fazia parte da quadrilha. Não foi possível descobrir o paradeiro de seu corpo", informa Guzella.
Pedido de extradição da Sérvia
Após a descoberta da real identidade de Starcevic, o governo da Sérvia entrou com um pedido de extradição junto ao STF, em novembro de 2020.
Relator do processo, Alexandre de Moraes decretou a prisão preventiva de Starcevic, após pedido da PGR, mesmo que ele já estivesse preso por causa do inquérito policial do Paraná.
Em sua decisão, o ministro do STF afirmou que o objetivo de sua decisão era o de "evitar a frustração da execução da ordem no caso de eventual determinação pela liberdade do extraditando no bojo do processo criminal que tramita em solo nacional".
Alexandre de Moraes não tem dons proféticos, mas o que ele queria evitar, acabou por acontecer.
De acordo com documentos do processo de extradição, a PF cumpriu o mandado na Casa de Custódia de São José dos Pinhais, onde Starcevic estava preso.
No dia 2 de junho de 2021, em ofício enviado ao ministro Alexandre de Moraes, o então delegado da PF Maurício Moscardi, conhecido por sua atuação na Operação Lava Jato, informa o cumprimento do mandado de prisão preventiva e pede que o criminoso sérvio seja mantido na prisão paranaense.
Starcevic foi representado no processo de extradição pelo defensor público da União Gustavo Zortéa da Silva.
Em sua petição, o advogado traçou um quadro de deterioração democrática da Sérvia para impedir a extradição do acusado.
"Em resumo, destaca-se que as liberdades fundamentais e as instituições democráticas na Sérvia continuaram a se deteriorar em 2020, sem sinais de melhora", afirmou o advogado de Starcevic, em sua petição.
A Sérvia vive um cenário de instabilidade política agravada pela queda da cobertura de concreto da principal estação ferroviária da cidade de Novi Sad, em 1º de novembro de 2024, quando 16 pessoas morreram.
Um ministro de Estado chegou a ser preso, mas os protestos contra o governo são cada vez mais frequentes.
Os argumentos da defesa não convenceram os ministros da Primeira Turma do STF, que foram unânimes em decidir pela extradição de Starcevic, em sessão virtual encerrada em 18 de junho de 2021.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública chegou a pedir a extradição antecipada do criminoso sérvio à Justiça do Paraná, mas ele não foi entregue por causa do processo criminal a que respondia no estado.
Absolvição e soltura no Paraná
As decisões do Judiciário paranaense foram favoráveis ao sérvio.
Em primeiro lugar, Mike e ele responderam à acusação dos homicídios de Skandar e Alvari diante da 2ª Vara Júri de Curitiba.
O juiz Daniel Surdi de Avelar decidiu pela impronúncia dos réus, isto é, eles nem chegaram a enfrentar um tribunal do júri. A decisão foi tomada com base no pedido do próprio Ministério Público do Paraná.
Com a absolvição do caso do duplo homicídio, o processo passou para a 8ª Vara Criminal de Curitiba, para que os acusados fossem julgados pela denúncia do crime de organização criminosa. Eles foram, novamente, absolvidos.
"Analisando as provas produzidas no presente feito, entendo que as mesmas se mostram frágeis e insuficientes, para que se possa proferir um édito condenatório em desfavor dos réus", afirmou a juíza Sayonara Sedano, em sentença proferida em 29 de novembro de 2023.
Boa parte das testemunhas não compareceu na audiência de instrução e as que compareceram mudaram seu depoimento.
Passados quase dois anos, a delegada que investigou a quadrilha não esconde sua frustração.
"Testemunhas passaram informações em absoluto sigilo em nossa delegacia. Quando o processo chegou na Justiça estadual, os nomes dessas pessoas foram expostos. A legislação brasileira permite que esse absurdo aconteça", afirma Guzella.
"Mas havia provas robustas apresentadas no inquérito em relação aos homicídios e às acusações de tráfico internacional de cocaína".
Starcevic foi posto em liberdade
Quando a sentença de absolvição da juíza Sayonara Sedano foi proferida, seu colega Daniel Surdi de Avelar já tinha expedido o alvará de soltura de Luka Starcevic, cinco meses antes.
No documento, lê-se que o sérvio deveria ser posto em liberdade, se não houvesse outro motivo para mantê-lo no cárcere.
Havia, justamente, o mandado de prisão assinado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.
O recebimento do alvará de soltura é assinado pelo então diretor da Cadeia de Custódia de São José dos Pinhais, Olival Monteiro. Hoje, ele comanda a Penitenciária Central do Estado II.
A coluna pediu explicações a Olival Monteiro sobre o ato de pôr em liberdade o criminoso sérvio. A resposta veio por meio da Secretaria da Segurança Pública do Paraná, a quem o Depen é subordinado.
"Na ocasião do cumprimento do alvará de soltura não havia registro de mandados de prisão vigentes em seu desfavor", respondeu a assessoria da pasta.
De acordo com informações colhidas pela reportagem, a direção da Cadeia de Custódia de São José dos Pinhais consultou o Banco Nacional de Medidas Penais e de Prisões do CNJ e não encontrou ordem de prisão contra o sérvio.
O sistema do CNJ funciona como um banco nacional de dados que armazena informações sobre mandados de prisão, alvarás de soltura, guias de recolhimento, entre outros documentos processuais relacionados a pessoas que estão presas ou sujeitas a outras medidas cautelares.

Hoje, se um policial militar parar Starcevic numa blitz, por exemplo, ele não será preso porque o mandado de prisão preventiva do STF não está registrado neste sistema.
"A direção do presídio tinha cópia do mandado de prisão do STF que a Polícia Federal entrega no momento do cumprimento", afirma o ex-delegado federal Maurício Moscardi. Ele trabalha, atualmente, como advogado em um escritório de Curitiba.
"Eles poderiam ter consultado a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, e o próprio STF, já que se tratava de um criminoso internacional".
Questionado se cabia a ele ou alguém da Polícia Federal registrar o mandado de prisão de Starcevic no banco de dados do CNJ, Moscardi respondeu que alguém do próprio STF deveria fazê-lo.
"Por essa razão, eu informei por ofício o cumprimento ao ministro Alexandre de Moraes".
Por sua vez, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública informou a Alexandre de Moraes que tinha avisado a Justiça do Paraná o seguinte: qualquer decisão a respeito de Starcevic deveria ser avisada ao Supremo, conforme registram ofícios acessados pela coluna. Isso não aconteceu.
Starcevic encontrou a liberdade, os meses se passaram e 2023 chegou ao fim. 2024, idem. Os órgãos federais desconheciam que o sérvio havia sido solto.
Até que em 29 de janeiro deste ano, uma juíza substituta da 8ª Vara Criminal de Curitiba informou à PGR que o sérvio tinha sido absolvido, mas não que ele havia sido libertado.
Em maio passado, o subprocurador-geral da República Artur de Brito Gueiros Souza pediu ao ministro Alexandre de Moraes que expedisse ofícios para que a Polícia Federal efetivasse a prisão de Luka Starcevic.
A Polícia Federal no Paraná informou nos autos do processo no STF que "as pesquisas realizadas até o presente momento não indicam possível local de paradeiro do extraditando no Brasil."
Nenhuma autoridade brasileira procurada pela coluna explica como um assassino e traficante internacional, com a extradição já aprovada, consegue sair da cadeia, mesmo tendo contra si um mandado de prisão da mais alta corte do país em vigor.
A coluna procurou o ministro Alexandre de Moraes. Ele não respondeu.
A PGR informou pela assessoria que "não adianta possíveis manifestações processuais".
O Ministério da Justiça não respondeu aos questionamentos da coluna.
O Tribunal de Justiça do Paraná afirma que "não comenta decisões judiciais".
Por sua vez, a Superintendência da Polícia Federal no estado afirmou que "por se tratar de procedimento em andamento, não se manifesta sobre o caso neste momento."
A Embaixada da Sérvia em Brasília recomendou que a coluna procurasse o Ministério das Relações Exteriores do país europeu, que não se pronunciou.
Em agosto de 2024, a 8ª Vara Criminal de Curitiba publicou um edital de intimação para avisar a Luka Starcevic que ele poderia ir ao fórum buscar os quase R$ 10.000 apreendidos no momento de sua prisão na estrada para Santos.
Luka Starcevic nunca buscou o dinheiro.
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