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Jamil Chade

Araújo alerta Gilmar Mendes a não se intrometer na política externa

Colunista do UOL

23/10/2019 04h00

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Em carta ao ministro do STF, chefe do Itamaraty diz que Judiciário não tem competência sobre política externa, que a mudança na diplomacia atende a "mandato popular" e confirma mudança na postura internacional do país em temas de gênero. Chancelaria, porém, não entregou telegramas e instruções sobre o assunto.

O ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, alegou que a mudança na postura internacional do Brasil sobre temas de gênero e direitos humanos atende à vontade demonstrada pelo povo brasileiro nas urnas ao eleger Jair Bolsonaro. Mas alertou que não aceitaria o envolvimento do Poder Judiciário na formulação da política externa.

As declarações acontecem num momento em que o STF avalia um pedido de liminar que apela para que a Corte determine a suspensão das ordens de Araújo a seus diplomatas e uma revisão do posicionamento brasileiro em temas de mulheres, gênero e LGBTI.

Numa carta ao Supremo Tribunal Federal obtida pela coluna, o chanceler explicou o posicionamento polêmico adotado pelo Brasil na ONU e confirmou que o governo "tem a preferência" por uma nova formulação ao debater a igualdade entre mulheres e homens.

"Como país democrático, em que vigora o pleno exercício do Estado de Direito, o Brasil busca implementar sua politica externa de forma consistente com o mandato popular outorgado pelo povo nas eleições", disse o chanceler, numa referência ao eleitorado conservador que apoiou o presidente.

"Desde a assunção de Jair Bolsonaro da Presidência, o governo brasileiro tem atualizado seu posicionamento em política externa nos vários foros em que o Brasil atua, inclusive sobre a questão de gênero, a fim de melhor refletir o mandato popular", explicou. Segundo ele, alguns desses termos tem "assumido conotação contrária aos interesses brasileiros".

No dia 8 de outubro, a coluna havia revelado que o Supremo havia dado dez dias para que o Itamaraty explicasse seu posicionamento sobre "gênero" e a decisão de instruir diplomatas brasileiros a vetar o termo nas negociações internacionais e em resoluções da ONU. O posicionamento brasileiro chocou a comunidade internacional e aproximou o Brasil de votos de países ultraconservadores, como Arábia Saudita.

Uma das orientações do governo aos diplomatas foi que sua política externa estaria voltada a derrubar termos como "gênero", além de explicar publicamente que o Brasil considerava a palavra apenas por um contexto de "sexo biológico: feminino ou masculino".

A decisão do STF foi tomada depois que a Associação Brasileira de LGBTI entrou com um pedido de medida liminar contra os atos da chancelaria, solicitando que as orientações da diplomacia fossem "imediatamente" suspensas.

No pedido de medida liminar, os advogados da associação alertavam que tal ato do governo "viola a dignidade humana" de lésbicas e gays à medida em que desafiam o entendimento firmado pelo STF acerca da matéria". O caso está sendo representado pelos advogados Rodrigo Muniz Diniz, Anderson Bezerra Lopes, Débora Nachmanowicz e Gustavo Miranda Coutinho.

A entidade lembra que a Corte "reconheceu o gênero como uma manifestação individual e pessoal, não sendo algo que possa ser constituído pelo Estado, a quem cabe, apenas, seu reconhecimento". Para a associação, portanto, o Itamaraty está "desobedecendo" à interpretação ao vetar o uso do termo gênero.

Num despacho de 7 de outubro, o STF considerou que a reclamação da entidade era constitucional e deu um prazo de dez dias para que a chancelaria preste informações.

Atualização da posição

Agora, num documento de 21 de outubro, o governo respondeu alegando que a petição era "inepta" e formulada com base em notícias de jornais. Segundo o chanceler, o Brasil continua comprometido em eliminar a discriminação contra mulheres. Mas indica que o governo "permanece preocupado com o uso indevido de termos e expressões que não têm definição internacional clara e que podem ser interpretados de forma distinta do que estabelece a legislação brasileira sobre a matéria".

Sobre a questão de gênero, Araújo confirma que "o governo brasileiro tem manifestado o entendimento de que o termo gênero é sinônimo de sexo biológico, feminino ou masculino". "O Brasil não se opõe ao uso do termo gênero, uma vez que o país é signatário de diversos instrumentos internacionais que fazem uso da expressão", disse.

Mas, segundo ele, a "atualização da posição do país busca alinhar a política externa com as propriedades da plataforma eleitoral do governo do presidente Jair Bolsonaro".

O chefe da diplomacia brasileira, portanto, indica que "no lugar do uso do termo 'igualdade de gênero', o Brasil favorece 'igualdade entre homens e mulheres', conforme estabelece a Constituição de 1988".

"O Brasil não se opõe ao uso do termo gênero em documentos internacionais. O país tem buscado deixar claro seu entendimento sobre o significado de expressões ambíguas em documentos ainda em processo de negociação", escreveu. "O Brasil não se recusou a apoiar nenhum documento internacional porque contivesse a expressão gênero. Mas buscou, com maior ou menor ênfase, a depender do caso, deixar claro seu entendimento sobre o tema", disse.

Lembrando que é contra a violência contra pessoas LGBTI, o chefe do Itamaraty insistiu que o governo reconhece o "importante papel das famílias na promoção dos direitos humanos". Ele também admite, como a coluna havia revelado, que o Brasil "tem buscado aproximar-se de países que tenham colocado a família como área de enfoque prioritário".

O texto da carta de 21 de outubro pede que Gilmar Mendes "negue o seguimento à presente ação" e que o governo está respeitando a Constituição.

Para argumentar neste sentido, a chancelaria coloca em questão a existência das reuniões nas quais o veto do Brasil foi apresentado na ONU. A coluna do UOL esteve presente em pelo menos três delas, em julho de 2019 em Genebra.

Judiciário x chancelaria

Na carta, Ernesto Araújo também manda um recado direto para Gilmar Mendes: o Poder Judiciário não pode entrar no mérito de política externa. A mensagem tem como objetivo impedir que o STF atenda à liminar e opte por suspender as instruções do Itamaraty neste assunto. Para o chanceler, tal atitude seria inviável e o risco de uma substituição de poderes.

"Como se sabe, a Constituição Federal concede privativamente ao presidente da República a competência para manejar as relações exteriores", disse, fazendo uma referência ao fato de que Ministério das Relações Exteriores ser o representante do Executivo nesse quesito. "Não compete ao Poder Judiciário imiscuir-se no mérito de politica externa", escreveu, indicando que a Corte não teria sequer "condições" para tratar dos assuntos.

Para completar, o chanceler insiste que sua decisão não violou as decisões do STF sobre a questão de gênero e que a petição nem sequer demonstrou eu houve um impacto das medidas e os direitos fundamentais.

A carta do dia 21, porém, não traz os telegramas internos, documentos ou instruções aos diplomatas, conforme havia sido solicitado pela associação LGBTI.

"Causa estranheza que, ao responder o ofício, o ministro das Relações Exteriores não tenha remetido cópia dos expedientes diplomáticos ao STF, possibilitando que o tribunal analise a conformidade de sua atuação com o texto constitucional", disse o advogado Anderson Bezerra Lopes. "Ninguém está acima da Constituição, nem mesmo o presidente da República e seus ministros, todos, ao tomarem posse de seus cargos, prestam o compromisso de cumpri-la", defendeu.

Ele ainda apontou que, ao contrário do que sustentou o ministro das Relações Exteriores em sua resposta, embora a Constituição Federal outorgue ao presidente da República a competência de manter relações com Estados estrangeiros e representar o Brasil perante organismos internacionais, "isso não franqueia ao mandatário uma liberdade total de atuação, podendo adotar posições que contrariem princípios da República, como a prevalência dos direitos humanos, conforme expressamente previsto no art. 4, inciso 2º".

Para completar, o advogado destaca que ao sustentar que "o governo brasileiro tem manifestado o entendimento de que o termo 'gênero' é sinônimo de sexo biológico, feminino ou masculino, o ministro insiste num posicionamento que desafia decisão vinculante do STF sobre o tema".

"A Constituição brasileira não faz essa distinção, logo, não cabe a um governante subverter a norma constitucional para impor seu entendimento pessoal sobre um tema", completou.