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Jamil Chade

Governo não é normal e não compreende relações internacionais, diz Amorim

O ex-chanceler Celso Amorim -
O ex-chanceler Celso Amorim

Colunista do UOL

01/11/2019 14h30

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Ex-chanceler e ex-ministro da Defesa, Celso Amorim traça um panorama do primeiro aniversário da eleição de Jair Bolsonaro para a política externa e constata: "Hoje, não temos um governo normal. Não temos um chanceler que fala coisas normais".

Em entrevista exclusiva à coluna, o embaixador não disfarça a preocupação com a reação do presidente com o novo governo argentino e aponta para as incoerências entre o discurso ideológico adotado pelo Itamaraty e a prática da aproximação com sauditas e chineses.

Amorim também destacou que a situação chilena deve servir de alerta para o Brasil. Mas rebateu os comentários do deputado Eduardo Bolsonaro, que sugeriu um "novo AI-5" se a esquerda optar por um caminho da radicalização.

"A esquerda brasileira e latino-americana não está radicalizando. Quem está radicalizando é o neoliberalismo, que levou a exploração a níveis extremos", alertou.

Eis os principais trechos da entrevista:

O fato de Bolsonaro não ter cumprimentado Alberto Fernandéz por sua vitória na eleição, que mensagem manda, quando até mesmo o governo americano o parabenizou?

Há uma total incompreensão sobre como se dão as relações internacionais. Você representa o estado e você representa os diferentes interesses do estado. O Brasil tem fronteira com a Argentina e isso não vai mudar. O Brasil é membro do Mercosul e a Argentina é a maior importadora de manufaturas do Brasil. Essas coisas são absolutamente fundamentais e, nas relações diplomáticas, elas precisam ser levadas em conta.

Desejar felicidades a um país vizinho com o qual você tem relações diplomáticas é como cumprimentar alguém conhecido na rua. Você não precisa concordar com ela. Mike Pompeo cumprimentou. Eu não concordo com quase nada que Pompeo pensa. Mas ele sabe da importância da Argentina. Agora, se ela é importante para os EUA, imagine a importância que ela tem para o Brasil.

Ao adotar essa postura e com o chanceler Ernesto Araújo dizendo as forças do mal venceram, qual é o risco que corre o Brasil em sua posição na América do Sul?

O Brasil é um país muito grande. Não creio que será isolado. Os países da região vão continuar a ter relações com o Brasil. Mas sabe aquela história do vizinho incômodo? Aquele gigante que não pode ser ignorado, mas você também evita estar convidando para as festas. O Brasil não poderá exercer a influência que sempre exerceu na região.

Veja bem. As relações intensas com a Argentina e o Mercosul vêm de Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Pode ter oscilado o grau. Mas são relações importantes e próximas. Sempre a primeira visita é para a Argentina.

Mas não é só a Argentina. O Chile também passa por mudanças. O próprio presidente Piñera, apesar de conservador, sentiu necessidade de demonstrar incômodo quando Bolsonaro fez referências ao pai de Michelle Bachelet. Enfim, há uma falta de percepção do que são as relações internacionais. Elas não são relações pessoais comuns. São relações entre estados. É preciso ter essa percepção, o que, infelizmente, não está ocorrendo.

Mas esse não é o papel do chanceler?

Um dos papeis do chanceler é o de ponderar. Eu nunca precisei fazer isso. Mas o nosso problema é que o chanceler, que teria um papel de moderação nessas questões, o que tem feito é agravar a situação.

E não é apenas com a Argentina. O mesmo foi feito com a França. Vamos então ter boas relações apenas com os EUA? Até os americanos querem boas relações com a Argentina. Portanto, até desse ponto de vista, é disfuncional o Brasil brigar com a Argentina.

Quais são os riscos que o Brasil corre com um Mercosul fragilizado?

O que está acontecendo com o Mercosul é muito grave. Obviamente, essa é também uma atitude do ministro da Economia, que resulta nessa ideia de redução tarifárias praticamente unilaterais. Na Rodada Doha da OMC, o que o Brasil oferecia era menos que agora, e em troca de compensações importantes, em subsídios agrícolas e outros setores. Hoje, estamos fazendo concessões muito maiores, em troca de nada.

É surpreendente a falta de ação dos industriais brasileiros. A CNI falou alguma coisa. Mas a Fiesp, que eu saiba, não falou nada. Isso é algo preocupante.

Com relação ao Mercosul, tenho muito apreço pelo que o presidente Sarney fez na aproximação. Mas não foi apenas ele. Em graus variáveis, Collor, Fernando Henrique e todos sabem da importância da relação com a Argentina. O próprio acordo com a UE, não é com o Brasil. É com o Mercosul. O governo quer ou não quer o acordo com a Europa?

Esse governo festejou o acordo. E depois briga com a França e com a Argentina e dissolve o bloco que faria parte do acordo? Não quer o acordo. Não quer o acordo. Em troca de que? Fazer um acordo com os EUA?

Olha, eu sou velho nisso. Participei de negociações da chamada Iniciativa Bush, da Alca e inúmeras outras. Sempre que entram temas de nosso interesse, os americanos puxam o freio. Dão para trás em aço, em têxteis. E tentam impor coisas que são sensíveis para nós.

O Mercosul não é só comércio. A paz tem um custo. Mas a guerra tem um custo muito maior. Mesmo que não seja uma guerra no sentido militar, uma briga ou uma rivalidade tem um custo muito maior. Enfim, isso tudo não está sendo considerado.

O sr. esteve na Argentina no momento da eleição. O novo governo quer de fato uma relação com o Brasil, ou aquela foto de Fernandez fazendo o sinal de Lula Livre foi algo pensado para criar um atrito?

Não. Aquilo não foi pensado para criar um atrito. Conheço Alberto Fernandez bem. Fiz duas visitas importantes com ele. Uma ao papa Francisco e outra ao Lula. Ele é uma pessoa de convicções. E tem a convicção de que Lula foi condenado injustamente. Aliás, não foi o Bolsonaro quem o prendeu. Então, não era uma declaração agressiva.

Fernandez tem uma tendência a não reagir com o fígado. Ele é racional e sabe da importância estrutural da relação com o Brasil e ele tem agido dessa forma. Agora, é preciso que haja o mínimo interesse pragmático do lado brasileiro. E o que vemos é Guedes dizendo, desde o começo, que a Argentina não era importante, e do lado do presidente, impulsos sem reflexão.

O novo governo argentino anunciou que deixará o Grupo de Lima, que trata da situação da Venezuela. Qual seria o impacto dessa decisão para o Brasil?

Eu acho que a decisão de sair do Grupo de Lima e mesmo deixar de tratar o regime de Maduro como uma ditadura mostra uma reviravolta na forma de tratar as questões. Podemos ter críticas ao regime de Maduro, da Venezuela. Mas ficar tratando como ditadura apenas serve para isolar e buscar soluções de força. Não ajuda. Temos outros exemplos, como bloqueios econômicos, isolamentos não trazem mudanças positivas. O que trazer mudança positiva é o diálogo.

Era o que se fazia no governo de Fernando Henrique Cardoso, de certo modo, e de maneira muito intensa no governo Lula. E, com isso, evitamos um conflito grave. Formamos um Grupo de Amigos, com EUA, Portugal e Espanha e foi chamado um referendo. Obviamente, as soluções agora não são as mesmas. Mas é importante manter a atitude do diálogo.

Quando vemos os protestos nas ruas chilenas, qual mensagem eles mandam ao Brasil?

O Brasil está na contramão da história. Há uma crise da visão neoliberal. O problema não é apenas a austeridade. É a injustiça. Fazer os pobres apertarem os cintos e os ricos ficarem mais ricos. O Chile tem tido crescimento, ao contrário do Brasil. Mas a desigualdade é grande. No Brasil, você tem uma soma da desigualdade com a estagnação e desemprego.

O deputado Eduardo Bolsonaro alertou que, se a esquerda radicalizar, medidas teriam de ser tomadas, inclusive um "novo AI-5". A esquerda está radicalizando?

As declarações são lamentáveis. Falar em AI-5 contraria até mesmo a constituição. Agora, esquerda brasileira e latino-americana não está radicalizando. Quem está radicalizando é o neoliberalismo, que levou a exploração a níveis extremos. Levou à pobreza e desigualdade. No Chile, no Equador, não foi a esquerda que comandou. Foram manifestações que surgiram ali. Os partidos de esquerda nem sabem muito bem como ajudar a conduzir a situação. A verdade é que essas situações servem de advertência ao Brasil. Não para botar tropas na rua. Mas para ter políticas econômicas e sociais mais compatíveis com as necessidades do povo.

O sr. foi um dos responsáveis por aproximar o Brasil dos países árabes. Como o sr. avalia a viagem recente do presidente para a região e as simpatias entre ele e Mohamed Bin Salman?

Eu defendo que tenhamos relações pragmáticas com todos os países. Mas, neste momento, escolher o Bin Salman para ter uma relação especial é algo que me deixa incomodado. O mundo aponta para as suspeitas sobre o envolvimento do governo saudita com a morte do jornalista (Jamal Khashoghi). Portanto, escolher ele como aliado preferencial não é boa coisa.

Ao contrário do que se dizia, nós não tínhamos conotações ideológicas com essas coisas. Nós defendíamos o multilateralismo, a multipolaridade. Nós íamos à Síria, como fomos para a Arábia Saudita. Agora, escolher apenas um lado, que não contempla o mundo árabe em seu conjunto, é um risco.

Agora, não deixa de ser curioso que o governo esteja sendo incoerente. Neste ponto, é até bom. Ele não cumpre o que promete. O chanceler dizia que iria isolar a China e foram para a China. Em alguns casos, o Bolsonaro está agindo com pragmatismo, contrastando com uma visão extremamente ideológica voltada contra países de nossa região e voltada contra os valores civilizatórios. Quando falamos de clima e meio ambiente, são valores civilizatórios.

Completamos um ano da eleição de Bolsonaro. O que mudou na percepção de política externa?

A mudança não foi em relação à política externa. Nunca houve nada parecido ao que está ocorrendo no Brasil hoje. A minha aspiração pessoal é a volta da normalidade. Eu fui embaixador já no governo Collor. E posso dizer que, pelo menos desde aquele momento, os governos eram normais. Você podia gostar ou não gostar. Mas eram normais. Hoje, não temos um governo normal. Não temos um chanceler que fala coisas normais. Precisamos voltar à normalidade. Essa é a base inicial para voltarmos a discutir outras coisas.

E como se volta à normalidade na política externa?

Pode ser que a realidade eduque. Como educou em relação à China. E não deixou de ter um papel educativo em relação aos árabes. Quem sabe a realidade educará em relação à América Latina, França e à ONU.